As fotografias compulsivas de Leila Danziger: reflexões sobre o encontro entre poesia e fotografia em “Robert Smithson”
Mariane Pereira Rocha
INSTITUTO FEDERAL SUL-RIO-GRANDENSE
ORCID: 0000-0002-0126-8063
Aulus Mandagará Martins
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
ORCID: 0000-0002-0590-1890
I. Considerações iniciais
Leila Danziger, nascida no Rio de Janeiro, é poeta e artista plástica. Danziger tem quatro livros de poesia publicados: Três ensaios de fala (2012), Ano novo (2016), C’est loin Bagdad [fotogramas] (2018) e Cinelândia (2021). Além disso, publicou os seguintes livros reunindo séries de produções visuais que foram produzidas e expostas em diferentes momentos, juntamente a debates críticos sobre seus trabalhos: Edifício Líbano (2012), Todos os nomes da melancolia (2012), Diários públicos (2013) e Navio de emigrantes (2018).
A obra de Leila Danziger propicia ao leitor uma série de reflexões acerca das artes visuais e da poesia. Em seus poemas, a própria arte enquanto método nos é proposta, através de poemas curtos, repletos de metalinguagem que se servem das imagens e dos materiais e procedimentos artísticos para problematizar a experiência contemporânea, o cotidiano, as vivências possíveis num mundo no qual o excesso de informações e de imagens se tornou normal. Para Florencia Garramuño (2014), a poesia contemporânea faz parte de um campo expansivo das artes, ou seja, “uma literatura inespecífica”, “uma literatura fora de si”, que se projeta para fora campo do literário e se intersecciona com outras linguagens e esferas discursivas, produzindo textos que transitam entre as artes visuais, o cinema, a publicidade, a performance, a fotografia, as tecnologias, entre outros. Segundo a autora, todas essas articulações demonstram que as práticas literárias se imbricam com a própria experiência contemporânea, delineando uma literatura “que se figura como parte do mundo e imiscuída nele” e que “parece propor para si funções extrínsecas ao próprio campo disciplinar” (GARRAMUÑO, 2014: 36).
A obra de Danziger dialoga ainda com questões sobre a impermanência, a efemeridade e transitoriedade da vida. Luiz Cláudio da Costa, a respeito da exposição Todos os nomes da melancolia, posteriormente publicada como livro em 2012, afirma que “Debret, Tarsila, balangandãs, cadernetas, jornais, louças, livros, fotografias, jornais – todos submetidos à impermanência imperiosa do tempo” (COSTA, 2012: 71), indicando que as colagens fotográficas de Leila, além de se constituírem como essa rede que se conecta com muitos artistas, constroem uma poética sobre a fragilidade.
Figura 1.
A imagem acima, pertencente à série Leituras da melancolia e que, posteriormente, foi utilizada como capa do livro Três ensaios de fala (2012), aponta para essa conversa entre permanência e impermanência. Os que vivem à beira da dissolução utiliza objetos esquecidos, se constituindo principalmente de borrachas escolares, artefatos que, por remeterem à infância, sugerem uma leitura relativa à passagem do tempo. Há algo de dialético, entretanto, na imagem das borrachas sujas que contrastam com o fundo branco: ao mesmo tempo em que indicam certa efemeridade, essas borrachas são também representativas daquilo que fica, apesar do tempo, sobreviventes, ainda que em um canto qualquer. Talvez por isso o título da obra seja Os que vivem à beira da dissolução, remetendo a essa dicotomia entre ser quase apagado – características das borrachas que, ao apagarem a escrita a lápis, se apagam a si mesmas –, mas perdurar ao passar dos anos, compondo agora uma obra de arte.
Dessa maneira, o objetivo do presente artigo é discutir a poesia da Leila Danziger, em um viés comparativo com a fotografia, atentando para as temáticas evidenciadas pela poeta, como a efemeridade do tempo, a transitoriedade da vida, a entropia do meio e a metalinguagem. A partir da análise do poema “Robert Smithson”, do livro Três ensaios de fala (2012), refletiremos sobre a fotografia como fio condutor da reflexão lírica da poeta, bem como lugar de encontro contemporâneo entre a poesia e as artes visuais. Para isso, traçaremos uma trajetória que parte das produções artístico-fotográficas de Danziger até a sua lírica, a qual nos possibilitará também tecer reflexões sobre a produção artística do próprio Robert Smithson.
II. As fotografias compulsivas de Danziger
Uma parte significativa do trabalho artístico de Leila Danziger é composto por fotografias, seja para desmaterializá-las e usá-las como elemento de suas próprias obras, seja como forma de registro da obra após sua organização. André Rouillé (2009) vai elencar esses diferentes usos da fotografia: para ele, haveria a “arte dos fotógrafos”, que diz respeito aos fotógrafos que tiravam fotografias artísticas. Esses “fotógrafos-artistas” não tinham reconhecimento dos seus pares que fotografavam comercialmente, e tampouco dos outros artistas, que desconsideravam a fotografia enquanto arte, mas fotografavam com maior autonomia e, portanto, eram mais livres na experimentação das técnicas fotográficas quando comparados àqueles que atendiam, principalmente, às demandas do mercado. Outra categoria seria “a fotografia dos artistas”, aquilo que os “artistas-fotógrafos” fazem quando se utilizam de fotografias para desenvolver trabalhos artísticos de outra ordem, visto que “a fotografia adquiriu, no último quarto do século XX, um lugar de primeiro plano na arte contemporânea” (ROUILLÉ, 2009: 287). Os artistas-fotógrafos, assim, usam de toda uma cultura fotográfica disponível a eles para elaboração de suas obras, não sendo eles, necessariamente, fotógrafos.
Não nos interessa aqui definir ou classificar o lugar ocupado por Leila Danziger, mas consideramos importante evidenciar que os encontros entre fotografia e arte aconteceram e acontecem de forma complexa e múltipla.
Observamos, também, que muitas das articulações que as artes vêm estabelecendo com a fotografia, conforme destacadas por Rouillé, estão presentes nas práticas de Danziger. Ao olharmos para as séries produzidas pela artista carioca, percebemos que uma dessas articulações presentes é a fotografia desempenhando a função de vetor da arte, como nas obras que são organizadas e depois fotografadas, da qual a instalação Pallaksch Pallaksch é um exemplo:
Figura 2.
Em Pallaksch Pallaksch, Danziger reúne uma série de resíduos de jornais e os reorganiza, a partir de tiras e recortes, dando um novo sentido aos materiais informativos que tinham como destino o lixo e o esquecimento. A fotografia surge apenas posteriormente, como forma de registro dessa organização elaborada pela artista. Ela explica:
Pallaksch Pallaksch é uma resposta ao apelo – decididamente escultórico – dos acúmulos de tiras de jornais. E, nesse sentido, a fotografia é um importante meio de investigação, registrando as diversas configurações de resíduos que se formam continuamente, mas devem ser rebobinados e guardados – de outro modo o espaço de trabalho ficaria inteiramente ocupado pelos restos e expulsaria minha própria presença. (DANZIGER, 2013: 42)
Dessa forma, vemos que a fotografia, em instalações como a referida, atua como vetor, ou seja, como maneira de registrar a obra de arte que se dá em outra esfera – na galeria, no atelier, no museu ou, até mesmo, nas ruas. Rouillé aponta, no entanto, que a fotografia enquanto vetor tende a exercer um papel secundário em relação à arte, ou seja, não é seu uso artístico que está evidenciado:
Essa posição acessória da fotografia equivale a tratá-la, cada vez mais, tanto no plano material, como no técnico ou plástico, como pura constatação, como um documento trivial, como um veículo neutro, como um registro automático, como uma coisa banal em meio a outras, como um simples instrumento: como um vetor”. (ROUILLÉ, 2009: 311)
Nesse tipo de funcionamento, a preocupação da fotografia em suas especificidades técnicas ficaria em segundo plano: “A seus olhos [dos artistas], a fotografia é puro documento, não merecendo nenhuma atenção técnica e formal particular, e seu papel serve apenas de contraponto visual aos textos, esquemas, mapas ou coisas que eles justapõem para construir as ‘propostas’” (ROUILLÉ, 2009: 314). Não entendemos, entretanto, que a fotografia em Danziger seja utilizada meramente como instrumento de sua arte. Há, nas fotos divulgadas, tanto em seu livro quanto em seu site [1], um cuidado estético com os enquadramentos, as cores, as proporções.
Outra discussão que se torna ainda pertinente no que diz respeito à relação de Danziger com a fotografia enquanto vetor é o fato de que, embora suas instalações e obras possuam originais, muitas delas se concretizam justamente em função da vetorização da fotografia. O registro fotográfico é, assim, uma forma da artista gerar reflexão acerca da própria arte: “Registros visuais e sonoros são tentativas de perceber nuanças, contornos, limites e, assim, instalar certa distância reflexiva entre mim e o rumor que me envolve de forma contínua (é preciso distinguir murmúrios dentro da concha do mundo de informação)” (DANZIGER, 2013: 44). Nesse sentido, cabe ainda o questionamento acerca da reprodutibilidade da obra de arte na contemporaneidade, conforme discutido por Arlindo Machado em A ilusão especular (2015). Para o autor, existem cenários nos quais a fotografia, ao invés de destruir a aura da obra arte, nos termos benjaminanos, a repõe. Ele utiliza como exemplo as obras do dadaísta alemão Kurt Schwitters, que compunha seus quadros através da colagem de dejetos, como jornais velhos, passagens de ônibus, barbante, cacos de vidro, etc. Machado comenta que não havia nobreza alguma nessas composições: “era olhar para um original e constatar a rudeza de suas formas, a imundície tomando conta de tudo, a cola vazando por baixo dos recortes e manchas dos dedos sobre a composição” (2015: 169). Na fotografia da obra, entretanto, a arte adquiriu um novo status:
[O] papel brilhante e homogêneo, a viva pigmentação das cores e toda a demais assepsia do tratamento químico lograram converter a miserabilidade do original numa matéria enobrecida, que nada fica a dever às paisagens plásticas dos “grandes mestres”. Aqui, seguramente, houve uma inversão do postulado benjaminiano: foi a fotografia que repôs a “aura” numa obra que programaticamente visava destruí-la, de forma que aquilo que deveria aparecer como um rompimento radical com a tradição acabou por se mostrar como uma capitulação diante dela. (MACHADO, 2015: 169)
Percebemos que em Danziger há uma sensibilidade para com a fotografia que vai além da mera reprodução de sua obra de arte, seja porque há uma reflexão acerca do próprio mecanismo da reprodução fotográfica, nas palavras da artista, uma investigação do meio, seja porque a artista-poeta utiliza as fotografias também enquanto elementos de sua criação artística, em séries como Struma (2018):
Figura 3.
Nessa série, dezenas de fotografias são expostas, lado a lado, com suas partes superiores descoladas, algumas delas revelando outra imagem no lado contrário. Struma faz parte de uma exposição maior, denominada Navios de Emigrantes. Segundo Pedro Lima,
Struma 1942 (2018) faz referência ao naufrágio de 1942 que vitimou mais de 700 judeus que tentavam a travessia entre a Romênia e a Turquia. A parede da galeria é suporte para papéis parcialmente dobrados e impressos em ambos os lados, cuja disposição remete ao movimento de ondas. Imagens de emigrantes, ora sorridentes em meio a saudações, ora apreensivos, se perdem sobre imagens de mares agitados. (LIMA, 2019: 300)
Sobre esse uso – a fotografia enquanto ferramenta apropriada na própria obra de arte – Rouillé elucida que é a arte contemporânea, primeiro com Francis Bacon e depois com Andy Warhol, que dará novos sentidos a tal relação. Historicamente, artistas e pintores se serviram tanto de fotografias como de técnicas fotográficas para o desenvolvimento de seus trabalhos, porém o tipo de relação evidenciada aqui diz respeito a um uso mais complexo e aprofundado, visto que os significados da fotografia são também atribuídos à obra de arte.
Isso fica visível em Struma já que parece ser o poder das fotografias enquanto gesto político que é trabalhado na exposição. Danziger utiliza fotografias tanto do Arquivo Nacional Brasileiro, de pessoas que fizeram o processo de migração entre Brasil e Europa, e fotografias do memorial Yad Vashem de Jerusalém, que reúne fotografias de pessoas fugindo da perseguição nazista (LIMA, 2019). Assim, esse trabalho além de trazer à tona horrores que foram vividos em outras épocas, ecoa os processos migratórios que ainda acontecem hoje, como os da África para Europa ou os da Síria para o Brasil. Há, ainda, uma comparação a ser feita com a frequência com que fotografias de imigrantes acabam sendo veiculadas a jornais, muitas vezes banalizando a exposição do sofrimento humano; quando essas fotografias são transpostas para a esfera da arte, nas galerias e museus, essa banalização é ressignificada, exigindo um olhar diferente dos espectadores.
III. Imagens de imagens
No poema “Robert Smithson”, de Três ensaios de fala (2012), percebemos uma série de reflexões sobre o fazer fotográfico e usos culturais e artísticos da fotografia, a partir das referências ao artista Robert Smithson, que se entrecruzam com as referências acerca do próprio processo artístico de Leila. No que diz respeito aos diálogos que a poesia estabelece com a fotografia, Adolfo Montejo Navas afirma que “quanto mais a arte e a fotografia convergem, mais se aproximam da poesia, pois ambas participam de uma estética ampliada, que vive de metamorfoses, apropriações” (NAVAS, 2020: 5). No mesmo sentido, Natalia Brizuela explica que quando a fotografia se torna natural na vida privada e pública, recorrente no cotidiano, ela passa a integrar os espaços das artes, “não como representação, nem como ilustração, nem como arte, mas como conceito” (BRIZUELA, 2014: 80). Esses novos usos da fotografia permitem, então, deslocamentos e intersecções entre a fotografia e a literatura, já que, conforme a autora, “as artes começaram a expandir-se, a deslocar-se, a transitar por zonas e materialidades que não eram as que, até aquele momento, haviam definido cada uma” (BRIZUELA, 2014: 80). Quando a literatura toca a fotografia, então, “a literatura move-se para uma prática conceitual, abre-se para o mundo, para aquilo que não era antes parte dos materiais, do meio literário” (2014: 31).
O poema “Robert Smithson”, desde seu título coloca em evidência esse local de diálogo: nele encontramos o nome do artista e fotógrafo norte-americano, conhecido pelo seu trabalho com land art, tipo de arte que utiliza a natureza enquanto cenário ou enquanto o próprio material para elaboração artística. O trabalho artístico de Smithson perpassa a trajetória do poema, que é dividido em duas partes, uma com doze e outra com dezessete versos, conforme vemos abaixo:
1
O ônibus atravessa as ruínas
do que já nasceu em escombros.
Smithson sobrevoa – em desastre – Amarillo, no Texas.
Por sorte, havia descido do ônibus num subúrbio de New Jersey]
e identificado: o monumento-viaduto, o monumento-poça
o monumento-draga-com-cano-e-pontões.
De subúrbio a subúrbio, nada a recordar.
E isso, ao menos, todos temos em comum
– entropia e nenhum sentido –
senão imagens de imagens
fotografias compulsivas
e redes de rumores.2.
Smithson toma o helicóptero para Utah.
No lago de ciclones,
a espiral de basalto é um monstro
que submerge
e ressurge
ao sabor das marés
carregada de detritos em águas vermelhas
de protoplasmas modernistas.
Pollock está lá, em vertigem lúcida
ele nada no turbilhão
enquanto Kiefer cata restos
de girassóis queimados
e fósseis de areia do futuro.
Os três entregues
ao mais intenso
transtorno
dos sentidos
(DANZIGER, 2012: 22-23)
A princípio parece haver um estranhamento naquilo que o eu lírico descreve. Sem distinções de tempos verbais, a narrativa no presente entrecruza temporalidades distintas: um ônibus que pára em um Subúrbio de Nova Jersey, um avião que sobrevoa Amarillo, um helicóptero que é tomado em direção a Utah. Ao retomarmos a trajetória do artista, contudo, o poema se torna mais claro, já que esses acontecimentos fazem referências a momentos significativos da vida de Smithson: duas de suas obras, The Monuments of Passaic (1967), produzido em Nova Jersey, e Spiral Jetty (1970) no Great Salt Lake no Utah e, por fim, à morte de Smithson, em um acidente de avião, em Amarillo, no Texas, em 1973.
Na primeira parte, identificamos a obra The Monuments of Passaic quando o eu lírico se refere a monumentos, nos versos 4 a 7: “Por sorte, havia descido do ônibus num subúrbio de New Jersey/ e identificado: o monumento-viaduto, o monumento-poça/ o monumento-draga-com-cano-e-pontões./ De subúrbio a subúrbio, nada a recordar.”. A obra reúne seis fotografias feitas pelo artista durante uma visita ao interior de Nova Jersey, Passaic, sua cidade natal. A região, ainda em desenvolvimento, possuía uma série de espaços em construção, o que chamou atenção de Smithson, conforme relata posteriormente em ensaio intitulado Um passeio pelos monumentos de Passaic, Nova Jersey: “Passaic parece cheia de ‘buracos’, comparada com a cidade de Nova York, que parece compacta e sólida, e esses buracos em certo sentido são os vazios monumentais que definem, sem tentar, os traços de memória de uma série de futuros abandonados” (SMITHSON, 2012: 165). Vemos nas fotos aquilo a que o poema se refere: o monumento-viaduto, o monumento-poça, o monumento draga-com-cano-e-pontões:
Figura 4.
Merece destaque a escolha da palavra “monumento”, tanto na obra de Smithson quanto no poema de Danziger. Monumentos são, via de regra, estruturas que foram criadas para enaltecer a memória de alguém ou algo, espécie de celebração à história de um acontecimento ou pessoa. Smithson subverte o uso da expressão: seus monumentos são espaços e construções comuns da cidade: uma ponte, um duto de água, uma caixa de areia. No sétimo verso do poema, Leila reflete sobre isso: “De subúrbio a subúrbio, nada a recordar”, enfatizando que, nas fotos de Smithson, não há nada de memorável ou extraordinário. Susan Sontag (2004) explica como, ainda no início do século XX, a fotografia rapidamente foi se apropriando dos temas insólitos e banais, em um procedimento que ela caracteriza como heroísmo da visão: logo que se entendeu que as câmeras não eram meras copiadoras da realidade, já que “ninguém tira a mesma foto da mesma coisa” (2004: 105), mas sim que as fotos seriam “indícios não só do que existe, mas daquilo que um indivíduo vê” (2004: 105), começou-se a buscar, dentro do campo fotográfico, aquilo que ainda não foi visto, a partir de perspectivas inovadoras. Para a autora, então:
A visão fotográfica significava uma aptidão para descobrir a beleza naquilo que todos vêem mas desdenham como algo demasiado comum. Esperava-se que os fotógrafos fizessem mais do que apenas ver o mundo como é, mesmo suas maravilhas aclamadas; deveriam criar um interesse, por meio de novas decisões visuais [2]. (SONTAG, 2004: 106)
No trabalho de Smithson, a busca pelo novo, pelo que ainda não foi visto, parece se dar através do procedimento de “ruína ao avesso”. Para o artista norte-americano, existiriam dois tipos de ruínas, a ruína romântica, que mostra os vestígios de prédios e monumentos que não existem mais, portanto, apontam seu passado histórico, tudo que o que o local foi e já não é; e a ruína “ao avesso”, que são os sítios de construção: estrutura e fundação do que virá a ser, portanto, sem passado ou memória. Nesse sentido, a descrição do eu lírico em “Robert Smithson” dialoga bem com essa noção: “O ônibus atravessa as ruínas/ do que já nasceu em escombros”, remetendo a essa noção de “escombros do futuro” refletida por Smithson.
Ao contrário do registro das “ruínas românticas”, que exercem fascínio pela captura de um mundo que está desaparecendo, as “ruínas ao avesso” não se apegam diretamente ao passado, registram o mundo que está por vir. De acordo com Sontag, o registro das ruínas românticas seria recorrente, porque “[o] passado mesmo, uma vez que as mudanças históricas continuam a se acelerar, transformou-se no mais surreal dos temas – tornando possível, como disse Benjamin, ver uma beleza nova no que está em via de desaparecer” (SONTAG, 2004: 91). Nesse sentido, o trabalho de Smithson parece ocupar um entrelugar: o processo, não o mundo como era antes, tampouco sua nova versão, o meio do caminho entre o passado e o futuro, um presente provisório, a efemeridade da presença do passado. Assim, é possível afirmar que há uma preocupação, mesmo nas “ruínas ao avesso”, com o registro do passado.
No seu ensaio sobre este trabalho, Smithson descreve também seu interesse pelo lugar e pelas construções. Há determinada luz na cidade e, ainda, certa experiência na relação que o artista estabelece com ela. Smithson narra sua relação com os lugares que fotografa através daquilo que Sontag nomeou como “visão fotográfica”. Ele olha para os lugares de Nova Jersey com atenção aos detalhes que são modificados pela luz, já que ela “cinematiza o local”. Talvez o lugar, por si próprio, não merecesse registro se o fotógrafo não tivesse o olhar sensível para perceber as nuances da luz e das cores naquele lugar:
O ônibus passou sobre o primeiro monumento. Puxei a campainha e desci na esquina da Union Avenue e River Drive. O monumento era uma ponte que ligava o condado de Bergen ao condado de Passaic. A luz do sol do meio-dia cinematizou o local, transformando a ponte e o rio em uma imagem superexposta. Fotografar com a minha Instamatic 400 foi como fotografar uma fotografia. O sol tornou-se uma lâmpada monstruosa que projetava uma série de “fotos imóveis”, através da minha Instamatic, em meus olhos. Quando eu caminhei na ponte, era como se eu estivesse andando sobre uma enorme fotografia feita de madeira e aço, e debaixo do rio existia um enorme filme que não mostrava nada além de um espaço em branco contínuo (SMITHSON, 1967: 2).
Ao mesmo tempo que o poema narra o desenvolvimento deste trabalho em Nova Jersey, o eu lírico relata também a morte de Smithson: “Smithson sobrevoa – em desastre – Amarillo, no Texas”. O artista faleceu em um acidente de avião, enquanto sobrevoava a cidade americana, em 1973, em busca de uma locação para seu novo trabalho. Há uma ordem nos acontecimentos que o eu lírico conta, visto que é apenas “por sorte” que Smithson “havia descido do ônibus em um subúrbio de New Jersey” três anos antes de sua morte.
A partir do oitavo verso do poema, um tom mais pessoal é assumido e o relato reflexivo sobre a arte de Smithson se transforma em possibilidades de aproximação. Aqui, há uma inserção da poeta, na passagem de uma terceira pessoa impessoal utilizada até então, para a primeira pessoa do plural:
E isso, ao menos, todos temos em comum
– entropia e nenhum sentido –
senão imagens de imagens
fotografias compulsivas
e redes de rumores.
O “todos” do oitavo verso parece se referir tanto, de modo literal, à própria artista e sua relação com Smithson e os demais nomes que mencionará na segunda parte do poema (Jackson Pollok e Anselm Kiefer), quanto a todos nós, leitores, que também compartilhamos das características que ela irá apontar: entropia, esse conceito que se refere à capacidade que os corpos têm de, uma vez tirados de sua ordem, nunca mais retornarem a ela [3], diz respeito à irreversibilidade da natureza e da humanidade de forma geral. Esse é um conceito utilizado, também, para descrever a obra de Smithson. Para Tiez a noção de entropia no artista norte-americano
implica em perceber que a Terra possui recursos limitados e que em algum momento entrará em colapso, inevitavelmente. Diante disso, o campo da arte deveria aprender a lidar com a entropia e não buscar formas de evitá-la ou desacelerá-la. Um dos caminhos seria a reabilitação de ruínas industriais. Em uma sociedade que produz dejetos na mesma medida em que produz objetos de consumo caberia ao artista propor soluções para esses dejetos, não para torná-los outra coisa, não como recicladores, mas sim para encontrar algo poético ou estético em tudo aquilo que foi desprezado, inutilizado, esquecido. (TIETZ, 2019: 70)
Faz sentido, dessa maneira, que o eu lírico coloque a entropia e a falta de sentido como aquilo que tem em comum com Smithson, visto que o trabalho de Leila Danziger também lida com o poético e o estético naquilo que foi desprezado, como vimos na obra Os que vivem à beira da dissolução, que utilizava daquilo que não tinha mais utilidade como elemento de organização artística. A prática entrópica busca “uma experiência em meio a transitoriedade” (TIETZ, 2019: 70) e esse parece ser um dos pontos de encontro entre Danziger e Smithson.
Outro ponto de encontro importante é, como vimos nos versos acima, as “imagens de imagens”, “fotografias compulsivas”. Conforme mencionámos anteriormente, tanto o trabalho de Danziger como o trabalho de Smithson colocam a fotografia em lugar central, utilizando-a de diferentes modos: como vetor da obra de arte, como ferramenta apropriada na composição da obra de arte ou, ainda, como objeto sobre o qual se gera reflexão. Além disso, quando a poeta indica Kiefer, nos versos finais, “enquanto Kiefer cata restos/ de girassóis queimados/ e fósseis de areia do futuro”, se refere a um trabalho no qual o artista também utiliza a fotografia como material. Os girassóis mencionados pelo eu lírico dizem respeito à obra The orders of night (1996) que é composta, justamente, por restos das flores sobrepostas a um autorretrato do artista. Embora a fotografia não apareça no resultado final, sabe-se que o artista utiliza fotos como base para suas pinturas [4].
As “redes de rumores” no décimo segundo verso, como característica daquilo que “todos temos em comum”, se aproximam então da noção de rede intertextual – cadeia de referências e influências que se manifestam em determinado texto verbal. A obra de Kiefer mencionada é de 1996, portanto não poderia ter influenciado diretamente o trabalho de Smithson, mas a rede intertextual se estabelece a partir do poema de Danziger.
A referência principal da segunda parte do poema, no entanto, é à obra Spiral Jetty (1970), um dos trabalhos mais conhecidos de Smithson, que consiste em uma espiral colossal construída com basalto no Great Salt Lake, no Utah, nos Estados Unidos:
Figura 5.
Spiral Jetty, apesar de ser deslocada geograficamente, ou seja, de não estar acessível em um museu ou galeria de arte, foi filmada pelo próprio artista durante o seu processo de elaboração e foi, posteriormente, amplamente fotografada por diferentes artistas e turistas, se tornando mundialmente conhecida. Hoje é possível visualizá-la através de ferramentas virtuais, como o Google Maps e o Google Earth [5], já que dada suas vastas proporções, as câmeras de satélite conseguem capturá-la. Susan Sontag (2004) aponta esse trabalho como um dos exemplos de obra de arte que existe especificamente para ser fotografada, um tipo de arte que só pôde existir depois da fotografia: “por vezes o tamanho [da obra de arte] é tal que ela só pode ser conhecida mediante uma foto (ou vista de um avião)” (SONTAG, 2004: 163, grifo nosso).
No poema, o eu lírico faz referência ainda ao fato da espiral de Smithson se modificar ao longo do tempo:
Smithson toma o helicóptero para Utah.
No lago de ciclones,
a espiral de basalto é um monstro
que submerge
e ressurge
ao sabor das marés
carregada de detritos em águas vermelhas
de protoplasmas modernistas.
Em alguns períodos do ano, Spiral Jetty fica submersa, “ao sabor das marés”, em outros períodos, fica avermelhada, em função dos processos químicos que acontecem na região. As modificações sofridas em decorrência da natureza remetem diretamente à principal característica da land art, que traz à tona reflexões sobre o tempo e a impermanência. Anelise Tietz destaca que, para esse tipo de arte, o tempo é uma importante questão: “em geral são definidas como obras de arte que propõem reflexões sobre o espaço e o tempo, porque ocorrem em espaços distintos dos habituais e porque são efêmeros e/ou experimentam a passagem do tempo” (TIETZ, 2019: 59).
Embora dificilmente possamos argumentar que Spiral Jetty é uma obra de arte efêmera, visto que há cinquenta anos constitui a paisagem do Utah, ela está vulnerável ao tempo, uma vez que se modifica e se reconstrói de acordo com a mudança de estações, de marés e das intempéries da natureza. Nas fotografias, entretanto, parece haver um reposicionamento da land art: se essa é pensada para fora das esferas dos museus, as fotos possibilitam esse retorno já que, embora a arte fique no Utah, as fotos podem ser amplamente exibidas, inclusive em galerias e museus. As fotografias possibilitam ainda uma duração que a obra de arte nem sempre apresenta, já que captam e preservam as diferentes fases da obra.
IV. Considerações finais
As produções de Danziger, poéticas e visuais, suscitam uma reflexão sobre o tempo. Enquanto a land art é sobre espaços externos, sobre reorganizar a natureza e estar vulnerável à ação do tempo de forma literal, as colagens fotográficas da série Leituras da melancolia organizam objetos do cotidiano, do espaço íntimo, da casa. A ação do tempo, aqui, é apenas sugerida, nas borrachas que não se dissolveram, nas cabeças de bonecos que com o tempo se perderam de seus corpos, nas páginas amareladas que foram quase completamente encobertas pelo mofo. O mesmo parece acontecer na lírica da poeta: o poema coloca em perspectiva sua produção artística, suas reflexões sobre a arte e as relações com outros artistas.
Não entendemos o poema de Danziger como uma explicação da obra de Smithson ou uma mera homenagem ao artista. O poema, possibilitando a reflexão sobre a obra de arte, é o lugar em que o eu lírico reflete sobre seus próprios procedimentos. A poeta, ao enfatizar traços em comum entre ela e demais artistas, se insere em uma tradição artística e deixa demarcado o seu lugar de artista-poeta-fotógrafa, cuja produção se posiciona em um entre-lugar. Notamos ainda que a fotografia aparece aqui como este meio através do qual a obra de arte se concretiza: seja o material que virá compor a instalação, seja a obra de arte em si, seja, inclusive, a forma como ela virá a ser conhecida, a reprodução técnica da obra de arte. Todos esses usos parecem estar postos, nas reflexões suscitadas pelo poema, sem juízo de valor. A discussão sobre fotografia e arte parece ter sido superada na produção de Danziger e no diálogo que ela estabelece com Smithson, já que o poema permite uma reflexão aprofundada sobre esses encontros e se instaura como lugar fértil para o entrecruzamento das artes.
REFERÊNCIAS
BRIZUELA, Natalia (2014). Depois da fotografia: uma literatura fora de si. Trad. Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco.
COSTA, Luiz Claudio (2012). “A melancolia na arte: um artefato da vida pública”. Leila Danziger: Todos os nomes da melancolia. VV.AA. Rio de Janeiro: Apicuri.
DANZIGER, Leila [et al.] (2012). Leila Danziger: Todos os nomes da melancolia. Rio de Janeiro: Apicuri.
–––––––––– (2012.). Três ensaios de fala. Rio de Janeiro: 7 letras.
–––––––––– (2013). Diários públicos: sobre a memória e mídia. Rio de Janeiro: Contracapa; FAPERJ.
GARRAMUÑO, Florencia (2014). Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco.
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NAVAS, Adolfo (2017). Fotografia & poesia (afinidades eletivas). São Paulo: Ubu Editora.
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TIETZ, Anelise (2019). “Percursos para achar-se: os deslocamentos de Robert Smithson.” Concinnitas 20.35: 53-77.
NOTAS
[1] Muitas das obras de Leila Danziger podem ser consultadas e/ou estão disponíveis para download em https://www.leiladanziger.net/
[2] É importante registrar que tal compreensão de Susan Sontag se diferencia da reflexão sobre fotografia e realidade proposta por Arlindo Machado na medida em que ele discute o problema da referencialidade da fotografia a partir da própria linguagem e Sontag, por sua vez, reflete acerca do impacto da fotografia na cultura e no modo como ela se articula com a realidade. Assim, o impulso que leva muitos fotógrafos a mostrar a realidade que antes era desconhecida (o “heroísmo da visão”) revela, de um lado, um certo apego à realidade (mostrar algo que existe mas que era desconhecido). Então, ambos apontam que a foto não é uma mera reprodução da realidade, mas com embasamentos distintos: Machado argumenta que a foto, por mais “realista” que seja, é sempre uma construção de linguagem; Sontag afirma que o espírito democrático da fotografia propiciou a busca por outras realidades e formas de ver o mundo, ampliando nossa percepção do mundo.
[3] Entropia é um conceito da área da física e se refere a uma grandeza termodinâmica utilizada para medir o grau de ordem e desordem molecular de um sistema. De acordo com Debora Shaw e Charles Davis em The concept of entropy in the arts and the humanities (1983) o conceito é transposto para outras áreas, sendo primeiro utilizado na religião com Erwin Hiebert em 1966 e, depois, nas artes com Thomas Pynchon, em 1973.
[4] Na entrevista abaixo, o artista comenta sobre seu processo criativo e menciona as fotografias como ferramenta para o desenvolvimento de suas pinturas. Ver Kiefer, Anselm (2014). “Anselm Kiefer at the Royal Academy.” [Interview conducted by] Tim Marlow. 06 Oct 2014. https://gagosian.com/quarterly/2014/10/06/anselm-kiefer-royal-academy-art/ [Data de Acesso: 09-Set-2021]
[5] A imagem de satélite de Spiral Jetty está disponível em: https://earth.google.com/web/search/Spiral+Jetty,+Corinne,+UT,+EUA/@41.4376786,-112.6688659,1278.81042229a,768.29485716d,35y,287.999712h,45t,0r/data=CokBGl8SWQolMHg4MGFjYWI5ZmMyY2EzYTk1OjB4YmYxOWU3OWExYzM2Y2JmNhlclDTaBbhEQCE3euuyzipcwCoeU3BpcmFsIEpldHR5LCBDb3Jpbm5lLCBVVCwgRVVBGAIgASImCiQJ5Gel3aqlREAR35Btax-UREAZSR1_h0MoXMAhsxXgOzo5XMA [Data de Acesso: 09-Set-2021]
© 2021 Mariane Pereira Rocha e Aulus Mandagará Martins.
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