Caligrafia também é corpo: entrevista-collage com Miguel de Carvalho sobre seus fotolivros de literatura

Maruzia de Almeida Dultra

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
ORCID: 0000-0002-0835-3703

 

 

Numa torrente fluvial, conseguirá distinguir o que chega primeiro?
Se o elemento transportado ou se o elemento transportador?
Apenas damos conta depois da sua passagem através do que fica.
Numa página minha, é isso que se presencia:
o testemunho de uma torrente que já passou.
E neste resultado final, o elemento surpresa é a estrela de maior brilho.
Miguel de Carvalho

 


Figura 1. Vens através da distância (p. 1/5) [1], 2020. © Miguel de Carvalho.

 

I. Porquê uma entrevista-collage

No exercício experimental com palavrimagens [2] realizado no Laboratório Onírico DSO, o artista português Miguel de Carvalho cria collages, incluindo livros e objetos poéticos. Sobre a collage, Max Ernst diz: “Se são as plumas que fazem a plumagem, não é a cola que faz a colagem.” (1969 [1938]: [3] 7, tradução nossa [4]). Nesta definição, assiste-lhe uma linguagem exclusiva de carácter poético. O termo collage foi criado pelo próprio Max Ernst em 1918, diferenciando da colagem e resistindo até hoje, por neologismo, com várias denominações como fotomontagens, montagens, photocollages, assemblages, rollage e outras.” (Silva, 2005: 16).

Como verbete do dicionário francês de Paul Robert, além de significar “composição artística feita de elementos colados” (2011: 261, tradução nossa [5]), collage é também “situação de um homem e de uma mulher que vivem juntos sem serem casados; concubinato, união livre.” (2011: 261, tradução nossa [6]). Esse uso coloquial do termo entrega a natureza própria à collage de ser composta por elementos imiscuídos entre si, que se envolvem libertinamente, em um misto de convivência e sedução. É desse modo que procedemos também na elaboração deste trabalho, que se apresenta sob a forma de collage composta a partir de uma entrevista estruturada e escrita, realizada para este fim, com Miguel de Carvalho, em janeiro de 2021. Abordando questões em torno da sua poética intermidiática, objetivamos dissecar a feitura da sua obra decorrida de 2005 a 2020, no que diz respeito ao gênero literário intermídia dos fotolivros de literatura.

A collage foi eleita como método e formato para este trabalho por ressoar as criações de palavrimagem do entrevistado, que se apropria de palavras e imagens pré-existentes para lhes dar um novo corpo. Recorta, junta e recompõe, tal qual o “trabalho da citação” problematizado por Antonie Compagnon (2007) em torno da (re)escrita. Com o mesmo movimento, imiscuímo-nos às palavrimagens de Miguel de Carvalho – que, na distância oceânica que nos separa, aceitou a aventura de ver, agora, um novo corpo surgido de outras mãos a partir das suas. Daí o ‘truque poético’ de caligrafar este texto, pois a caligrafia também é corpo e os nossos estão aqui, como collage, através de uma tal “poética da adulteração” [7] (Dultra, 2018) que faz da sua voz a nossa, e desta análise reflexiva uma prática poética de escrita, mas não somente desta, também plástico-visual.

 

II. Poética intermidiática

Em 15 anos a criar collages, Miguel de Carvalho já produziu mais de 20 fotolivros de literatura, entre autorais e em colaboração, editados e de exemplar único. No presente trabalho, elegemos os seguintes critérios para a seleção dos títulos com tal formato em sua obra: livros compostos por texto & imagem contendo cinco ou mais páginas, de autoria individual e já finalizados. Assim, elencamos 12 títulos que apresentaremos como exemplos do gênero.

Cinco deles foram passados à condição de múltiplos pelo processo editorial, a saber: Pupila dilatada (2006); A cidade dos paleólogos e as viagens nocturnas do Capitão Dodero (2006/2017); Relatos de certas madrugadas (2012); Interior (2018); e Vens através da distância (2020). Os respectivos originais de tais publicações encontram-se no acervo pessoal do artista, junto aos demais livros aqui selecionados, que se mantêm como exemplares únicos. São eles: Noite (2006); Anjo dilacerado (2006); Memória intersticial (2007); Silêncio (2007); As gordas da ordem: uma carta e algo mais (2007); A cidade encantada, violência e labirinto: crónica do reino (2009); e Hoje acordei com uma terrível dor de cabeça (2009).

O Laboratório Onírico DSO em que atua foi criado em 2005, a partir da necessidade de recorrer a mergulhos mentais, de ir fundo nas lembranças, nos sentimentos e em outros lugares interiores do silêncio, pois é deste silêncio que produz a sua linguagem. DSO são as iniciais da expressão em francês “Debout Sur l’Oeuf”[“De pé Sobre o Ovo”], então retirada de um verso de André Breton (1940) no poema Pleine Marge. A respeito do empreendimento de experimentações, Miguel de Carvalho afirma que o verdadeiro laboratório é o seu crânio, por isso não necessita de muito espaço para criar, basta aquele que ele próprio ocupa.

Espécie de ‘poeta plástico’, Miguel de Carvalho apresenta várias frentes ativas, passando por um forte pendor ligado ao livro. Assim, autodenomina-se como “operário-do-papel”, ofício a partir do qual trabalha não apenas na criação bibliográfica, mas também como livreiro antiquário e editor de livros. Apesar de sua extensa e intensa atividade criativa-criadora – seja visual, plástica e/ou literária –, ele tem resistência à nomenclatura “artista”, como quase a qualquer rotulação. Em especial, por respeito aos artistas propriamente ditos, que têm a condição existencial de poderem e saberem criar constantemente, sem interrupção, desde que acordam até que se deitem e depois, com a clareza e o discernimento de espírito que os definem; artistas que têm a capacidade de autoavaliar o seu próprio trabalho, considerando-o interessante ou não, rejeitando-o ou não, destruindo-o ou não.

Há, portanto, nesse conceito de artista, uma clara posição profissional, a que o poeta plástico respeita, mas não se apropria do rótulo porque não considera que a arte o coloca nem redireciona de forma tão direta para a realidade quanto os momentos em que está a realizar as suas criações em estado de libertação, sendo estas, sim, para ele, absolutamente reais e não artísticas. Por outro lado, na sociedade atual, o mercado da arte está fortemente ligado a círculos comerciais, que defendem interesses financeiros, e a lobbies para atingir determinadas posições sociais. É nessa perspectiva que Miguel de Carvalho rejeita por completo a posição de artista, com renome ou consagração, associado a um mercado. Pois, nesses casos, é de mercado que se trata – não de arte, muito menos de criação.

Por conseguinte, a rotulação do gênero ‘livro de artista’ não contempla Miguel de Carvalho, já que, neste termo, deduz-se que foi o artista que criou o livro, estando implicada toda a refutação contextualizada acima. A concepção da autoria como definidora do livro de artista está presente também na sistematização conceitual realizada por Clive Phillpot (apud Silveira, 2008: 47). O gênero inaugurou uma “nova arte de fazer livros” (Carrión, 2011 [1975]), que se diferencia das publicações feitas no modelo editorial tradicional, desenvolvido com a lógica mercadológica, através da cadeia de produção do livro, na qual o autor é apenas um dos elos.

Um livro pode ser o recipiente acidental de um texto, cuja estrutura é irrelevante para o livro: estes são os livros das livrarias e das bibliotecas. Um livro também pode existir como uma forma autônoma e independente, incluindo talvez um texto que seja parte integrante e que enfatize essa forma: aqui começa a nova arte de fazer livros. [...] Na velha arte o escritor escreve textos. Na nova arte o escritor faz livros. (Carrión, 2011: 14-15)

Assim, as experimentações com o gênero livro de artista ampliam o papel do autor, que passa da escrita exclusiva para uma atuação nas diversas etapas de produção da obra, desde a concepção do projeto. Levando em conta esses parâmetros, é possível afirmar que o conjunto de obras aqui apresentado é constituído por livros de artista – que são, por natureza, intermidiáticos. “Na intermídia, [...] o elemento visual […] se funde conceitualmente com as palavras. Podemos ter caligrafia abstrata, poesia concreta, ‘poesia visual’ [...].” (Higgins, 2012 [1984]: 47). O fotolivro de literatura é outro exemplo de tal interpenetração verbo-visual, então proposto aqui como um gênero literário intermídia, incluindo nele os livros de artista de Miguel de Carvalho.

É nesse sentido que o poeta plástico tem como ponto assente a definição de Breton, feita em 1935, para “poema-objecto” como sendo “[…] a experiência que consiste em incorporar num poema objetos usuais ou outros, mais exatamente para compor um poema no qual os elementos visuais encontram lugar entre as palavras sem nunca fazer jogo duplo com eles.” (apud Bérhar, 2012: 802, tradução nossa [8]). Mais tarde, em 1942, o autor redefiniu a noção, declarando que “o poema-objeto é uma composição que tende a combinar os recursos da poesia e da plástica especulando sobre o seu poder de exaltação recíproca.” (apud Bérhar, 2012: 805, tradução nossa [9]).  

Com base em tais definições bretonianas, a utilização do termo “poema-objeto” tem, para Miguel de Carvalho, o mesmo sentido que “livro-objeto”, porque não há, na sua produção de obras, limites físicos ou outros que distingam um livro de um poema. Nesta acepção proposta para livro-objeto, este ganha imediatamente um sentido libertador senão mesmo libertário, pois dispara em todos os sentidos, como um universo em expansão pelo espaço. É esse o papel que desenvolve a poesia, seja imagética, seja textual, sejam ambas conjugadas no mesmo suporte e daí o poema-objeto e o livro-objeto.

[F]alar de livros-objectos é falar da experimentação que muda as coordenadas perceptivas visuais do espaço-tempo e entra num universo de conexões, acasos, instantes, acidentes e intensidades  variáveis. É falar dos reencontros, das forças, das polarizações e das necessidades que levam os seus criadores [...] ao acto puro da criação de ‘objectos’ particulares, porque inúteis, porque marginalizados tanto da plástica, como dos mercados de arte uma vez que não são nem esculturas, nem pinturas, nem assemblages, nem livros e, portanto, inclassificáveis na sociedade. (Carvalho, 2014: 62, grifos do autor)

Segundo Phillpot, livro-objeto é o “Objeto de arte que alude à forma de um livro.” (apud Silveira, 2008: 48) e, de acordo com a categorização proposta pelo autor, ele é um subgênero do livro de artista (apud Silveira, 2008: 47). A mesma hierarquia é apresentada na tipologia dos livros de artista feita por Julio Plaza, sendo que, no caso dos fotolivros de literatura, a montagem sintática [10] característica do livro-objeto dá lugar à montagem pragmáticaou bricolagem do “livro intermedia”: “[...] a tendência é para a mistura e junção de elementos provenientes de outras estruturas estéticas” (1982: s.p.). O autor caracteriza o “livro intermedia” como aquele que apresenta polifonia, intertextualidade e relação intermeios. Portanto, também sob essa perspectiva, as obras aqui apresentadas possuem caráter intermídia, que, segundo Claus Clüver, “[...] recorre a dois ou mais sistemas de signos e/ou mídias de uma forma tal que os aspectos visuais e/ou musicais, verbais, cinéticos e performativos dos seus signos se tornam inseparáveis e indissociáveis” (2006: 20).

 

III. Palavrimagens em ação

Os trabalhos de Miguel de Carvalho buscam por uma dinâmica que diz respeito à linguagem visual e às relações das imagens quando são confrontadas entre si, umas com as outras, umas contra as outras e estas, por sua vez, com as palavras onde aquelas imagens encontram um lugar de coabitação. Analogamente, é uma relação da alma (o lado textual) com o corpo (o lado imagético) que a alberga sem que um seja a interpretação do outro. A trajetória do olhar no texto tem uma direção distinta da trajetória dos sentidos que provocam olhar a imagem. Ocupando ambos o mesmo suporte (ou espaço), a relação entre si torna-se híbrida e, no limite, metamorfizada.

No entanto, um texto é também uma imagem, embora com linguagem de códigos próprios. As várias formas de escritura se balizam pelo binômio “imagem da escrita, escrita da imagem” (Veneroso, 2002: 82), numa condição proeminentemente dialogal. Dessa forma, pode-se ler ao mesmo tempo que se contempla e vice-versa, ao longo de uma estrada de dois sentidos. Havendo, nela, imagens textuais de braços dados com imagens não-textuais, de forma descontínua e abrupta, em constante confronto, assistimos a uma fusão de códigos provocados e provocatórios da imaginação. O texto aparece, então, como elemento ativador desta, a despertar sensações e sentidos para a criação das imagens que a visão não alcança. A via da descontextualização de breves textos, ou melhor, de duas ou três palavras, é a solução que o poeta plástico encontra para uma provocação incisiva do leitor-espectador. É a provocação da mente que a ele interessa, não a social, o que consegue através do olhar, utilizando este instrumento como canal por onde flui o poder explosivo da provocação.

 

IV. “Paixão pelos objetos encontrados” [11]

Ao compor suas páginas de texto & imagem, Miguel de Carvalho não começa, em concreto, pela linguagem verbal ou visual. Tendo todos os elementos dispersos e prontos sobre a mesa de trabalho, eles chegam a ficar depositados dias e dias, sem que lhes pegue, sem que lhes dê nova pátria. Esperam por momentos propícios aos incidentes exteriores com implicações internas. Existe um poder decisivo sobre a importância de cada uma destas linguagens que é o tipo de fontes que chegam às mãos do poeta plástico. Ele não as procura, simplesmente vêm ao seu encontro, pelo acaso. A sua condição profissional de livreiro antiquário privilegia-o a essas predisposições para o encontro com as fontes. Sempre que é chamado para adquirir espólios de bibliotecas e de casas particulares, depara-se, frequentemente, com acumulações de todo o tipo de papel efetuadas, por vezes, ao longo de décadas, chegando até a atravessar séculos.

É aí que Miguel de Carvalho entende residir uma poesia primordial, e são essas fontes que anseia para construir as margens por onde o seu caudal criativo irá fluir. Este caudal é constituído por imagens, textos e até distintos suportes de papel, que também têm uma linguagem própria. Todas elas conjugadas são a matéria útil para o seu trabalho, pois, afinal, numa torrente fluvial, conseguirá distinguir o que chega primeiro? Se o elemento transportado ou o elemento transportador? Apenas damos conta depois da sua passagem através do que fica. Nas páginas do poeta plástico, é isso que se presencia: o testemunho de uma torrente verbo-visual que já passou. E, neste resultado final, o elemento surpresa é a estrela de maior brilho.

Afora a interdependência palavrimagem que marca sua obra, a relação entre linguagem verbal e linguagem visual não lhe importa como questão reflexiva na prática artística, pois a razão e o pensamento são elementos desconstrutivos no processo de criação de Miguel de Carvalho. Ele provoca-lhes um conflito ao criar no menor tempo possível. Por isso o termo “torrente”: é um acontecimento energético de curta duração, não deixando por isso de ser um movimento natural. Não interessa ao poeta plástico realizar a ilustração de um texto, tão pouco interessa a narração de uma imagem. Se dá título às obras é porque em determinado momento do processo criativo, de alguma forma, surgem-lhe esses nomes, aflorando algures na mente como uma exaltação de todo aquele estado energético. Uma erupção de algo inesperado. O automatismo, desprovido de sentido estético, é fator determinante.

Também por essa via, no contato direto com as fontes, durante o processo de recorte-cola, insurgem os temas dos seus fotolivros de literatura. O poeta plástico faz o caminho caminhando constantemente; as pedras que vai encontrando na caminhada são as que irão edificar a obra. São variados os tipos de livros, manuscritos e materiais impressos que utiliza como fonte para criar suas collages das quais derivam os fotolivros. Quando se trata de livros como fonte de imagens e/ou palavras que serão descontextualizadas do suporte inicial, Miguel de Carvalho procura por aqueles que se apresentam com defeitos graves, estruturais e profundos, como por exemplo livros incompletos, deteriorados, com falhas evidentes. Por uma questão de ética profissional, ele nunca fez uso de livros que estivessem intactos em tudo do que são compostos (encadernação, folhas de texto e imagens impressas à parte).

O mesmo acontece com os manuscritos, nos quais o poeta plástico é particularmente atraído pela caligrafia regular, legível e equilibrada, pois, para ele, essa perfeição que um manuscrito pode encerrar é desconcertante. E é este desconcerto que tem o poder energético de mobilizá-lo em desconstruir tais antiguidades. Por outro lado, um manuscrito tem uma dinâmica ondulante que um texto tipográfico não tem, dinâmica essa que transmite um lado relaxante provocado pela ondulação e pelo ritmo caligráfico. É como quem está concentrado, em frente ao mar, a observar a linha do horizonte. Em redor do ponto fixado e focado pelo olhar, há um movimento que nos embala, que nos toma durante o processo do visionamento. Este efeito Miguel de Carvalho consegue também quando se debruça num manuscrito.

Quanto a outros tipos de papéis, tem por hábito guardar aqueles que o deixaram inquieto por alguma razão no momento que os encontrou. Ou porque testemunham um acaso, ou porque têm impressas imagens e/ou palavras que se destacaram ao seu olhar. Então reserva-os no atelier para usá-los adiante em seus trabalhos. Assim, confessa ter papel suficiente para trabalhar nesta vida e em mais outra...! Demais fontes vão desde restos de papel de casas tipográficas até revistas licenciosas e fragmentos de passe-partout de moldurarias de quadros, não passando desapercebido nem mesmo por caixotes do lixo. Enquanto operário-do-papel que é, não anda atrás da matéria; é o papel que vem ter com ele, não descartando nenhum que lhe chega. Por isso tem fases na produção, dependendo do que lhe vem parar aos olhos e às mãos.

Apesar da natureza imagética da fotografia, o poeta plástico não se furta à materialidade da forma física desta mídia, possuindo ao seu dispor um acervo com milhares de fotos antigas provenientes da compra de espólios. Algumas são do século XIX e outras, a maioria, dos anos 1920 aos anos 1970. O montante se deve à forma como as adquire, pois os arquivos fotográficos pessoais são vendidos através de álbuns inteiros, sendo que cada álbum contém centenas de fotos. Dentre elas, os temas mais comuns são os retratos de famílias e individuais, além dos eventos com pessoas. E isso tem uma explicação: um álbum de família deixa de ser do interesse desta quando se perde a memória, os nomes, as referências. Passa a ser um objeto sem valor afetivo, que chega a incomodar porque já não se conhecem nem se identificam as pessoas que lá constam, que lá testemunham uma emoção inclassificável porque não há referências. Afinal, quem quer saber das emoções alheias do tempo?

Esse é o momento favorável à alienação, porque tratar e cuidar de um álbum que nada nos diz é ocupar espaço em casa com o que não tem utilidade, nem para o cotidiano, nem para a memória. Numa sociedade de consumo, não há tempo nem espaço para preservar. Que utilidade terá para a memória se ela se perdeu na transição de geração? Para o poeta plástico, essa perda de memória é um poema, um momento de poesia convulsiva; não há maior momento de poesia que esse mesmo, o da perda. O da alienação de nós mesmos e o da alienação de uma memória que o era e deixou de o ser. O desmoronamento da nossa arquitetura existencial edificada à custa de lembranças de família, que se perdeu, que ficou dividida com a morte, com o divórcio, com a revolta, com a dor, com a partida. Além disso, há uma poética própria do desconhecido, das pessoas desconhecidas, dos lugares desconhecidos com gente desconhecida dentro. Isso tudo encanta e atrai Miguel de Carvalho; leva-o a reconstruir uma memória futura à custa das que foram perdidas. E se não usa fotos próprias nem recentes é porque estas ainda preservam memórias, existem e persistem no cotidiano, por isso são inalienáveis. São os seus órgãos e a sua pele.

 

V. Artesanias táteis

Nas fontes textuais, o poeta plástico realiza um efetivo processo de leitura dos textos, em busca de palavras que lhe suscitem alguma tensão e/ou atração, que, por vezes, chega a ser conflituosa. As palavras de maior interesse ao seu trabalho são as ambíguas de sentidos, magnetizantes, que, quando conjugadas, impelem a significações várias e distintas. Sendo o grifo uma espécie de recorte que se faz no texto para destacar citações enquanto se lê, “Construo um mundo à minha imagem, um mundo onde me pertenço, e é um mundo de papel.” (Compagnon, 2007: 11). No caso do poeta plástico, esses recortes não são metafóricos, mas sim materiais; sua relação com as palavras contém plasticidade, daí designá-lo como tal. Assim como as imagens anatômicas, que são recortadas e retiradas para fora dos livros onde se encontram alojadas, como numa dissecação, as palavras sofrem intervenção da mesma ordem, com o mesmo rigor de seleção. Colocados sobre a mesa de trabalho para posterior e nova utilização na fixação, esses recortes textuais ficam também dependentes de uma intuição do operário-do-papel, cuja origem ele desconhece por completo, mas que está presente e será determinante no processo de fixação junto às imagens.

Toda essa artesania é realizada no âmbito papeleiro, através de procedimentos analógicos, com o uso de ferramentas de corte (tais como tesouras de pormenor, de avanço rápido, bisturis, estiletes de precisão, canivetes, etc) e de colagem (gomas arábicas e colas acrílicas). Há um despertar do sentido tátil nas imagens e palavras recortadas. Talvez Miguel de Carvalho sinta na pele a história paralela que elas encerram ocultadas, já que os livros usados têm uma história além da que está impressa. Se há um trabalho que realizou em 2007 com suporte digital e fotografias autorais (então intitulado Silêncio), foi exatamente para perceber se tal meio exercia sobre ele uma atração semelhante a que exerce a feitura de uma obra em formato analógico. Porém constatou que não houve qualquer resultado convulsivo, nem mágico, tão pouco místico no seu processo de construção digital. Para o poeta plástico, a tridimensionalidade de um trabalho encerra um segredo ao mesmo tempo que uma cumplicidade em relação direta com a linguagem que procura criar, e que não encontrou nem descobriu no plano virtual.

 


Figura 2. Silêncio (p. 2/5) [12], 2007. © Miguel de Carvalho.

 

É o processo de criação que a ele lhe interessa, talvez também o resultado, enquanto surpresa durante o ato de criação. Sempre que ocorre uma surpresa, o ato é interrompido. A surpresa é uma interrupção. Se considerar a longevidade digital, essa interrupção é, ela mesma, interrompida, logo não há surpresa. Assim, as páginas com collages que criou materialmente apresentam, muitas vezes, papéis com imagens ou textos em mau estado de conservação, com manchas de umidade, corrosão provocada pela tinta gálica, acidez do papel, etc. E nestas ocasiões, não é bem a durabilidade que atrai o poeta plástico para o efeito, mas, antes, uma característica que é inerente ao tempo e à ação deste sobre o papel, e que está totalmente fora do seu controle, assim como do de qualquer pessoa. Este ‘fora de controle’ que se opta, que não é um descontrole, é também, por si só, uma “exaltação recíproca”, tal como sugere Breton para o poema-objeto.
Ainda sobre a questão da materialidade nessa produção de fotolivros de literatura, outro aspecto que chama a atenção é o da tiragem. Dentre as 12 obras que selecionamos para exemplificar as discussões deste trabalho, sete delas são livros inéditos e que se mantêm em ‘tiragem mínima’ como exemplares únicos. Das cinco outras obras, Miguel de Carvalho já realizou múltiplos, indicando que houve, por sua parte, a solicitação interior de que necessita para prolongar o ato de criar através da interação material com o original até sentir-se “saciado”. Trata-se, portanto, de prazer, como consequência da interação corporal, ou desejo. Essa produção em “multiplicação” apenas ocorre quando o poeta plástico tem determinado trabalho em mãos que não considera ainda “arrumado” ou definitivo. Ele nunca recorre a uma obra mais antiga (pronta, por assim dizer) para o efeito, pois acredita que cada uma tem o seu tempo de permanência em processo criativo.

 

VI. “Entre ser um e ser mil” [13]

Nesse sentido, Miguel de Carvalho não possui regra temporal na criação dos originais, mas garante que esta não é demorada: uma tarde ou uma madrugada, alguns dias ou horas... Dentro da sua produção, destacam-se as edições artesanais fac-similadas, publicadas em tiragens não comerciais então distribuídas por oferta e que se constituem como publicações numeradas e assinadas (algumas delas contendo exemplares com collages originais e quase todas lançadas pelas edições Debout Sur l’Oeuf). Quanto a tais múltiplos, após a criação do livro original, as etapas de confecção prendem-se ao trabalho típico de digitalização de cada uma das imagens, impressão em tipografia, verificação das provas com a cor e o enquadramento, seleção do tipo de papel e montagem de exemplar a exemplar realizada pelo próprio autor. Por isso nem sempre o trabalho é feito em série, depende das disponibilidades íntima, de tempo e de materiais. Também a tiragem de cada edição é definida em função dos materiais disponíveis, além da extensão do público a que tenciona distribuir os exemplares.

Dentre as obras “multiplicadas” aqui apresentadas, Pupila dilatada é a que tem o mais longo tempo de edição, cujos exemplares múltiplos ainda estão em processo de montagem, 15 anos depois. O título corresponde ao primeiro livro manual de Miguel de Carvalho, tendo sido também sua publicação inaugural dentre os fotolivros de literatura. Composto por cinco poemas e cinco collages, os textos estão impressos em película de poliéster Helox e as imagens sobre papel branco couché mate, colados sobre papel Arches. A expressão “pupila dilatada” possui sentido duplo: no olhar, implica exposição a pouca luz; já a pupila enquanto estudante em estado de dilatação implica desejo. Se é erótico ou não? O poeta plástico considera que tudo é. E que o erotismo está mais a cargo da percepção do leitor-espectador, embora, na condição de autor, a aponte como uma de suas obras eróticas.

 


Figura 3. Pupila dilatada (p. 2/5) [14], 2006. © Miguel de Carvalho.

 

Também inaugural, A cidade dos paleólogos e as viagens nocturnas do Capitão Dodero é o primeiro romance-collage com imagens manipuladas & textos ready-made publicado em Portugal. Outros três títulos publicados anteriormente no país aparentam correspondência com essa obrade Miguel de Carvalho, mas dela distinguem-se por seguirem o esquema de composição ready-made exclusivo às imagens, apresentadas junto a textos autorais. São eles: A ampôla miraculosa: romance (Cadernos Surrealistas, 1949), de Alexandre O’Neill; Pas pour les parentes (composto em 1951 e fac-similado pelas edições Menú, Cuenca-Espanha em 1999), de Mário-Henrique Leiria; e Conto do Natal para crianças (composto em 1972 e dado à estampa pelas edições Forja em 1975), também de Mário-Henrique Leiria.

A cidade dos paleólogos e as viagens nocturnas do Capitão Dodero veio a público pela primeira vez em edição do autor, em 2006, em homenagem a Ernst, no 30º aniversário de sua morte. Em formato A4, é composta por 15 folhas impressas contendo 13 collages (uma por folha) e fragmentos de romances populares do século XIX, sendo o conjunto de fólios albergado num estojo de cartão impresso. O personagem “Capitão Dodero” é protagonista do romance de Anton Giulio Barrili intitulado Capitan Dodero; Una Notte Bizzarra: novelle. No 40º aniversário de morte daquele que é considerado o mentor do processo de collage, Miguel de Carvalho iniciou uma nova ediçãodo mesmo título, com metade das dimensões do formato original e sob a forma encadernada de um livro tradicional.

 


Figura 4. A cidade dos paleólogos e as viagens nocturnas do Capitão Dodero (p. 3/13) [15], 2006. © Miguel de Carvalho.

 

Fruto de uma experiência surrealista, de busca por um estado de beleza convulsiva em plena liberdade de criar sem regras, sem ancoragens e sem referências, essa obra constitui uma tensão nas relações palavra-imagem que operam por descontinuidade no tempo, no espaço e nas próprias leituras. Tanto nela quanto nos demais trabalhos do poeta plástico as tensões vêm do frenesi que a imagem cria – o desejo é motor central. Daí estar tensionada também a noção de gênero literário, pois operar com palavrimagens tira as definições do lugar, revira, remexe, põe em xeque as fronteiras conceituais. É como se revirasse a pele em favor de uma ‘pele’scrita’, como aparecem os versos eróticos de Noite,torneando, com letras manuscritas pelo próprio autor, os corpos celestes e corpos femininos fotografados. A obra é composta por 13 fólios, cada um contendo uma collage com um verso.

 


Figura 5. Noite (p. 6/13) [16], 2006. © Miguel de Carvalho.

 

Também com texto feito a próprio punho, através da escrita automática, Memória intersticial foi manuscrito diretamente no papel com imagens coladas pelo autor, sem versão de rascunho, embora as páginas com longa prosa poética não apresentem qualquer rasura. As folhas tinham, inicialmente, sido idealizadas para uma série de collages, porém, pela falta de material adicional no momento da continuação da sua feitura, foram postas de lado à espera de novo andamento. Esse andamento aconteceu sob a forma de escrita torrencial. O automatismo na escrita implica em velocidade, implica em ausência de qualquer controle racional das palavras que surgem no momento, num estado que se aproxima ao da transição entre a vigília e o sono, propício a narrativas oníricas. A velocidade é, pois, de alguma maneira, um filtro ao estado racional.

 


Figura 6. Memória intersticial (p. 1/7) [17], 2007. © Miguel de Carvalho.

 

Já em Anjo dilacerado, aparece um uso misto entre o texto manuscrito de Miguel de Carvalho e recortes textuais de um livro impresso do século XVIII. Cada fragmento recortado é composto por duas palavras, então retomadas no poema caligrafado da página seguinte. Essa intercalação é feita ao longo das 16 páginas, formando oito duplas correspondentes. As imagens, por sua vez, são fragmentos fotográficos da pintura de um anjo, rasgados e recolados, sem ordem, sobre cartolina cinza, esta recortada com silhueta e montada sobre cartolina preta.

 


Figura 7. Anjo dilacerado (p. 1 e 2/17) [18], 2006. © Miguel de Carvalho.

 

Outro exemplo de mistura caligráfica e impressa está em As gordas da ordem: uma carta e algo mais, obra feita a propósito de um fragmento de papel com nomes de senhoras que apareceu ao poeta plástico dentro de um livro no seu local de trabalho. Sem explicação, imaginou que elas eram gordas, além de desconhecidas. Assim como apareceu no mesmo livro, uma página de jornal do século XIX, da qual ele recortou as palavras que lhe interessavam para compor uma espécie de prefácio ilegivelmente paranoico, seguindo-se de fragmentos de papel manuscrito também do princípio do século XIX, os quais ordenou como se se tratasse de uma carta. As gordas foram então compostas com modelos de estruturas moleculares de um livro que também lhe surgiu no mesmo momento, enquanto as fotografias de pernas femininas foram tiradas do seu arquivo de imagens eróticas.

 


Figura 8. As gordas da ordem: uma carta e algo mais (p. 2 e 5/12) [19], 2007. © Miguel de Carvalho.

 

Embora Miguel de Carvalho não tenha como foco a provocação social, no ano de 2009 produziu dois fotolivros de literatura com cunho crítico voltado para tal âmbito. O primeiro deles, A cidade encantada, violência e labirinto: crónica do reino, é um extenso trabalho composto por 43 fólios permeados de ironias políticas e algumas referentes ao panorama literário e aos círculos de poesia nacional. A matéria para sua produção foram recortes de jornais publicados entre novembro de 2008 e maio de 2009.

 


Figura 9. A cidade encantada, violência e labirinto: crónica do reino (p. 14/43) [20], 2009. © Miguel de Carvalho.

 

O segundo, Hoje acordei com uma terrível dor de cabeça, é um conjunto de 20 fólios sequenciais que narram, ironicamente, episódios políticos da cidade de Figueira da Foz, onde vive o poeta plástico. O enredo ficciona, através dos personagens, personalidades da cena política local àquela época: o Sr. Silva (Duarte Silva, Presidente da Câmara Municipal); o Sr. Lopes (Lídio Lopes, Vice-presidente da Câmara); e a Srª Redondo (Ana Redondo, Administradora da Empresa Municipal). De cariz panfletário e satírico, a obra foi realizada para fazer circular clandestinamente na altura dos acontecimentos políticos locais. Por isso a caligrafia típica do autor foi substituída por uma outra, feita por ele mesmo para não ser identificável, e o livro tão pouco foi assinado. Porém a distribuição de múltiplos pelas caixas de correio da cidade deixou de ter sentido porque houve dissolução do poder local logo após o contexto que originou tal produção.

 


Figura 10. Hoje acordei com uma terrível dor de cabeça (p. 11, 12 e 13/20) [21], 2009. © Miguel de Carvalho.

 

Dentre as edições artesanais fac-similadas, Interior e Vens através da distância foram destinadas a festejar a chegada dos anos de 2019 e 2021, respectivamente. Ambas foram feitas a partir dos poemas-collage originais com o mesmo título dos livros. Composto por cinco collages, Interior conta com uma pequena passagem datilografada, além das palavras recortadas que compõem seus versos. Como se adentrasse “as margens humanas” de que fala o poema, além da fotografia de um rosto humano, o livro traz como imagem um exame médico ecográfico que o autor encontrou em um livro usado do seu acervo, e recortes de um compêndio de anatomia humana com mais de 10 volumes, que lhe tem sido de grande valia também em outros trabalhos.

 


Figura 11. Interior (p. 5/5) [22], 2018, © Miguel de Carvalho.

 

Tanto que é recorrente a aparição ‘anatômica’ em suas collages, inclusive em Vens através da distância, no qual todas as cinco páginas contam com a presença de órgãos humanos desenhados, intercalados por fotografias externas de casas. Arquiteturas urbana e corporal que falam da menor distância íntima: a nossa casa e o nosso corpo, justamente no ano em que o contexto social foi de confinamento doméstico devido à pandemia coronaviral. Cada collage é formada por 25 quadrantes com imagens distintas, alguns deles complementares, outros contendo pequenos trechos que vão compondo versos. Assim, uma estrofe do poema se forma a cada página.

 


Figura 12. Vens através da distância (p. 3/5) [23], 2020. © Miguel de Carvalho.

 

Outro fotolivro de literatura comemorativo é Relatos de certas madrugadas,feito para celebrar o novo ciclo solar do calendário Maia. Todo o processo de edição, totalmente artesanal, passou pelas mãos de Miguel de Carvalho, depois de passar pelos seus olhos. Cada exemplar é composto por três fotografias digitais impressas sobre papel de alta gramatura, junto a uma curta prosa poética, cujo trecho segue transcrito abaixo. As imagens foram capturadas pelo próprio autor, no mesmo lugar referido no texto.

Irrompe um fragmento de papel no orvalho, ao abandono, à desolação dos dias. Esta paixão pelos objectos encontrados simula visões salgadas, na ilusão de encontrar algum rosto migrante. Outras visões atravessam o silêncio. Escrevo estas frases com a tinta que flui entre a linfa e o sangue. Frases fechadas, inebriadas. As dedadas são frenéticas e também salgadas. Não há sombras esmagadas, não há violência gravada na pele. (Carvalho, 2012: 1)

 

 
Figura 13. Relatos de certas madrugadas (p. 4/4), 2012. © Miguel de Carvalho.

 

VII. conclusão

A atuação do poeta plástico trespassa os sistemas verbal e visual, incluindo a mídia fotográfica e o livro, de modo que um não serve para decifrar o outro. Antes, estão a serviço, mutuamente, um do outro, a favor da composição de sensações como blocos capazes de afetar o leitor-espectador de modo igualmente transversal. Se cada artista inaugura seu método e cada livro de artista inaugura uma forma, não nos cabe, aqui, estabelecer definições generalizantes. Assim, especificamente sobre a poética intermidiática de Miguel de Carvalho e o conjunto apresentado dos seus fotolivros de literatura, concluímos que sua incursão no universo do papel detém, e ao mesmo tempo emana, a potência de encontros entre: a mão e a tesoura, a palavra e a imagem, os recortes e a superfície, a visão e o tato, o presente e o passado, o sonho e a vigília, a geografia íntima e a territorial, o desejo e o prazer consumado, a turbidez e a clarividência, a criação e a vida – em suma, lampejos dos dias em que o poeta plástico é uma chave do caos [24].

 



REFERÊNCIAS

BÉHAR, Henri, ed. (2012). “Poem-objet”. Dictionnaire André Breton. Paris: Classiques Garnier. 284-285.
BRETON, André (1940). “Pleine Marge”. Cahiers du Sud. 229.
CARRIÓN, Ulises (2011). A nova arte de fazer livros. Trad. Amir Brito Cadôr.  Belo Horizonte: C/ Arte.
CARVALHO, Miguel de (2006). A cidade dos paleólogos e as viagens nocturnas do Capitão Dodero. Figueira da Foz: Edição do Autor.
–––––––––– (2006). Anjo dilacerado. [Não publicado]
–––––––––– (2006). Noite. [Não publicado]
–––––––––– (2006). Pupila dilatada. Figueira da Foz: Ed. Debout Sur l'Oeuf.
–––––––––– (2007). As gordas da ordem: uma carta e algo mais. [Não publicado]
–––––––––– (2007). Memória intersticial. [Não publicado]
–––––––––– (2007). Silêncio. [Não publicado]
–––––––––– (2009). A cidade encantada, violência e labirinto: crónica do reino.[Não publicado]
–––––––––– (2009). Hoje acordei com uma terrível dor de cabeça.[Não publicado]
–––––––––– (2012). Relatos de certas madrugadas. Figueira da Foz: Ed. Debout Sur l'Oeuf.
–––––––––– (2014). “Atrás das pálpebras o sonho abriu os olhos. Lá estava tudo... (contribuições para a construção de uma ideia sobre livro-objecto)”. Revista Cão Celeste. 5: 61-63.
–––––––––– (2018). Interior. Figueira da Foz: Ed. Debout Sur l'Oeuf.
–––––––––– (2017). A cidade dos paleólogos e as viagens nocturnas do Capitão Dodero. Coimbra: Ed. Debout Sur l'Oeuf.
–––––––––– (2020). Vens através da distância. Figueira da Foz: Ed. Debout Sur l'Oeuf.
CLÜVER, Claus (2006). “Inter textus/ Inter artes/ Inter media”. Revista Aletria: Revista de Estudos de Literatura. 14.2: 10-41. https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/18067/14857 [05 setembro 2021].
COMPAGNON, Antonie (2007). O trabalho da citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG.
DERDYK, Edith, ed. (2013). Entre ser um e ser mil: o objeto livro e suas poéticas. São Paulo: Senac.
DUBOIS, Philippe (2004). Cinema, vídeo e Godard. Trad. Mateus Araújo Silva. São Paulo: Cosac Naify.
DULTRA, Maruzia de Almeida (2018). “Vídeo-cartas (não) filosóficas: percurso de aparição de um corpoimagem.” Tese de Doutoramento, Universidade Federal da Bahia.
ERNST, Max (1969). “Collage”. Dictionnaire abrégé du surréalisme. Eds. André Breton e Paul Éluard. Paris: José Corti. 7.
HIGGINS, Dick (2012) “Intermídia.” [1984] Trad. Amir Brito. Intermidialidade ou Estudos Interartes: Desafios da Arte Contemporânea 2. Eds. Thaïs Flores Nogueira Diniz e André Soares Vieira. Belo Horizonte: Rona Editora; FALE/UFMG. 41-50.
PLAZA, Julio (1982). “O livro como forma de arte (Parte I: O Livro artístico)”. Revista Arte em São Paulo. 6 abr 1982. http://www.mac.usp.br/mac/expos/2013/julio_plaza/pdfs/o_livro_como_forma_de_arteI.pdf [18 agosto 2018].
ROBERT, Paul (2011). Le Petit Robert Micro. Ed. Alain Rey. Paris: Le Robert.
SILVA, Gladys da (2005). “Collage: conceitos & procedimentos”. Arquitetura & collage: um catálogo de obras relevantes do século XX. Porto Alegre: FAU/UFRGS. 16-21.
SILVEIRA, Paulo (2008). A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto Alegre: Editora UFRGS.
VENEROSO, Maria do Carmo (2002). “Caligrafias e escrituras: diálogo e intertexto no processo escritural nas artes no século XX”. Revista Em Tese, 5: 81-89. dez 2002. http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/emtese/article/view/3425/3354 [13 junho 2014].

 

 


NOTAS

[1] Transcrição da estrofe presente na Fig. 1:
“Vens através da distância
e na nascente escureceu mais cedo
sobre os corpos quebrados à violência
desses cantos.
Em ti a beleza é sempre tarde
é bruma”.
(Carvalho, 2020: 1)

[2] Neologismo composto por justaposição com subtração de vogal para expressar graficamente a interpenetração entre o verbal e o visual presente no objeto deste trabalho.

[3] Assim como nessa citação, encontram-se com as datas originais de publicação entre colchetes a primeira aparição das demais referências cuja informação é necessária para o entendimento do contexto discutido.

[4] Do original em francês: “Si ce sont les plumes qui font le plumage, ce n'est pas la colle qui fait le collage.”  (Ernst, 1969 [1938]: 7).

[5] Do original em francês:  “[…] composition artistique faite d'éléments collés.” (Robert, 2011: 261).

[6] Do original em francês:  “Situation d’un homme et d’une femme qui vivent ensemble sans être mariés ; concubinage, union libre.” (Robert, 2011: 261).

[7] “Nossa aposta é que, dela, é interessante ressaltar a promiscuidade com ‘o original’, com o plágio e com o radical autoplágio, o que permite chamá-la de poética adúltera. Dito isto, emerge a problematização: mesmo que mencionada a fonte da citação adulterada, sua ideia torcida não é uma simples alteração que se faz para camuflar o texto anterior, nem é uma edição textual, mas um ponto de vista outro através do tangenciamento da linguagem, já que ocorre por ínfimas trocas íntimas... de letras, pontuações, palavras, fazendo nascer um ‘monstro’ que se aproxima por semelhança e, ao mesmo tempo, se distancia e é recusado pelo aspecto de aberração que possui. Um palimpsesto da própria linguagem.” (Dultra, 2018: 225).

[8] Do original em francês: “[…] l'expérience qui consiste à incorporer à un poème des objets usuels ou autres, plus exactement à composer un poème dans lequel des éléments visuels trouvent place entre les mots sans jamais faire double emploi avec eux.”  (Breton, 1935 apud Bérhar, 2012: 802).

[9] Do original em francês: “Le poème-objet est une composition qui tend à combiner les ressources de la poésie et de la plastique et à spéculer sur leur pouvoir d'exaltation réciproque.” (Breton, 1942 apud Bérhar, 2012: 805).

[10] “Montagem sintática: onde a mensagem estética é fortemente autorreferente, voltada para si mesma, daí seu caráter de ambiguidade, pois ela está basicamente organizada pela similaridade. Em termos de livro de artista a montagem sintática está nos livros que têm seu suporte como forma-significante, onde existe interpenetração entre a informação e o suporte [...], isto é, que a estrutura espaço-temporal do livro é intraduzível para outro sistema ou meio.” (Plaza, 1982: s.p.).

[11] Trecho de Relatos de certas madrugadas (Carvalho, 2012: 1).

[12] Transcrição das estrofes presentes na Fig. 2:
“Nas falésias celestiais
os ausentes esboçam corpos
as cidades despem suas pedras
e concedem-nas uma respiração afogante*
cuja humanidade escorre pelos cristais
de boca em boca, de grito em grito.

Com a leve saliva
erguem-se ruínas externas
atravessam espelhos
à procura da sensualidade duma árvore longínqua.”
(Carvalho, 2018: 2).

* Neologismo criado pelo autor como sinônimo de uma respiração aneoróbica causada por submersão e que leva à morte. Nesse sentido, sua liberdade de criar imagens visuais em papel através das artesanias táteis se estende a uma espécie de artesania com palavras escritas que nos transmitem imagens próprias.

[13] Ver Edith Derdyk (2013).

[14] Transcrição do poema presente na Fig. 3:
“Eu agora rapaz
com uma asa de areia
escrevo palavras livres
sobre o ventre duma flor.”
(Carvalho, 2006: 2)

[15] Transcrição do trecho presente na Fig. 4: “Não perguntou mais nada; recusou a agua e as tamaras que a hospitalidade d'aquella boa gente lhe oferecia, e seguiu o seu caminho.” (Carvalho, 2006: 3).

[16] Transcrição do verso presente na Fig. 5: “à noite o caminhar solitário no espaço intermédio entre mundo e sonho” (Carvalho, 2006: 6).

[17] Transcrição do texto presente na Fig. 6: “Todos os meus sentimentos são precipitados de artefante matéria filtrados do sono. Os meus pontos de apoio são alfabetos ferozes organizados no erro e na ortografia oligoelementar do acaso. As palavras que pronuncio são buracos que flutuam no medo. Como póvoas e andorinhas segregadas do poder primaveril. Nas florestas nocturnas persigo o silêncio. Persigo e respiro nos corredores das suas raízes carbonizadas pelo ouro. Como linfa e dor viscosa armazenada na inocência distal. Quando ecoam as vozes calcinadas, as metáforas irrompem pela maturidade dos frutos.
E a floresta continua nocturna como meu corpo. Fecho os olhos.” (Carvalho, 2007: 1).

[18] Transcrição do poema presente na Fig. 7:
“No silêncio demorado e apressado
abrem-se todas as janelas interiores
corpos estranhos,
palavras estruturadas,
asas de anjo,
sexo cansado,
vidros sobrepostos de pensamento,
extravasam toda a sua seiva,
no sentido do grande dia feminino.”
(Carvalho, 2006: 2).

[19] Transcrição do texto presente na Fig. 8: “Resistência número 722. O original da carta fica n'esta redação ás ordens de quem o quiser ver. Esperemos: e assim que o Santo Padre animar e provar as gôrdas da ordem terei a honra de vos enviar uma fiel e incondicional reprovação pública á última hora e depois de entrar na machina desmentir inteiramente a explicação. É falso. É falso. É falso. De V. E. todo dedicado.” (Carvalho, 2007: 2).

[20] Transcrição do texto presente na Fig. 9: “O dia em que o poeta era uma chave do caos” (Carvalho, 2009: 14).

[21] Transcrição dos trechos presentes na Fig. 10: “O Sr. Silva tem muitos amigos / disso não tenho dúvidas / Lembro-me de um, o Sr. Lopes, quem Sr. Silva aconselhou cortar o bigode e tomar chá antes de pegar ao serviço” (Carvalho, 2009: 11-13).

[22] Transcrição do poema homônimo ao livro (em itálico o verso presente na Fig. 11):
“As margens humanas
onde me deito pelo teu nome
da volúpia respira devagar
experimenta corpo e sangue
finalmente
esta nau oscila na fundura.”
(Carvalho, 2018: 1-5).

[23] Transcrição da estrofe presente na Fig. 12:
“Falas em lenda…
no lugar dessas vitórias e derrotas
dos ventos                           das noites do passado
há muito tu forçaste que havia de ser sombras de outros.”
(Carvalho, 2020: 3).

[24] Adulteração do verso: “O dia em que o poeta era uma chave do caos” (Carvalho, 2009: 14).