Assinaturas de olhares: uma análise da fotobiografia de José Cardoso Pires
Gabriella Mendes
UNIVERSIDADE DE COIMBRA, CLP
ORCID: 0000-0003-1871-1743
Rita Gomes
UNIVERSIDADE DE COIMBRA, CLP
ORCID: 0000-0003-3135-4568
I.
A fotografia, desde o seu aparecimento, criou um campo de artisticidade autónoma de tal maneira que, ao ser considerada uma nova musa, vaticinou-se a morte da arte, em especial da pintura. No entanto, se as inevitáveis projeções sobre o futuro das artes costumam ter um viés pessimista, é inegável que novas técnicas permitem um crescimento significativo de outras explorações artísticas. No que toca à fotografia, ela foi capaz, por exemplo, de inaugurar uma nova tradição de retrato e de gerar descendentes diretos – como o cinema. Por sua vez, no diálogo intertextual – e interartes –, cria infinitas possibilidades de produzir objetos que inaugurem novas estéticas e até genologias: veja-se o fotolivro, no qual as fotografias estabelecem uma forma narrativa complexa, distinguindo-se da imagem isolada. Assim, as imagens não possuem autonomia, mas constituem-se como segmentos de uma composição – o livro –, em relação de interdependência (Smith, 2015: 330).
No fotolivro “as imagens fotográficas […] se tornam parte de um processo no qual sua interpretação depende da relação com os outros sistemas de signos presentes no livro, sejam eles outras fotografias, poemas, pinturas, projeto gráfico da obra etc.” (Costa, 2020: 20). Este fundamento muito se assemelha com o género narrativo específico que visamos privilegiar neste trabalho: a fotobiografia. Para Carlos Reis, “A fotobiografia é um género narrativo compósito em que se relata o trajeto biográfico de uma figura […] conjugando a fotografia, como elemento ilustrativo dominante, com a reprodução de documentos e com componentes discursivos adicionais […].” (2018, 194). Deste modo, as relações entre os signos manifestam um processo modulatório próprio, recíproco e simultâneo, que muito se afasta de outras dinâmicas entre signos verbais e não-verbais na construção de uma narrativa, como a fotonovela ou a banda desenhada.
O parentesco entre o fotolivro e a fotobiografia [1] permite que algumas abordagens utilizadas na análise de um sejam – via de regra – aplicáveis ao outro com certa precisão. Exempli gratia, para Martin Parr e Gerry Badger, a forma do fotolivro é mais narrativa do que pictórica e oferece espaços de exploração (2004: 6-7), destacando, no fotolivro, a narratividade que costuma estar associada a géneros textuais verbais. No caminho inverso, Fabiana Bruno, por exemplo, valoriza o aspeto icónico da fotobiografia, perfeitamente aplicáveis ao fotolivro:
A Fotobiografia [...] pensa a imagem – predominantemente fotográfica neste caso – não como um mero objeto, mas como um “acontecimento” – ora epifania, ora fenômeno no sentido etimológico das palavras –, um campo de forças que se cruzam e um sistema de relações que coloca em jogo diferentes instâncias enunciativas (o verbal), figurativas e perceptivas (o visual). (2010: 30).
Especificamente, é através de três pontos de contacto que consideramos fundamentais que verificamos maior proximidade entre o fotolivro e a fotobiografia: a autoevidente presença da imagem fotográfica; a estrutura de montagem e diálogo entre linguagens variadas; e o seu caráter intrinsecamente temporal – que pode ser manifesto pelo incontornável valor narrativo de ambos (como referido por Reis, Parr e Badger) e/ou pelo seu efeito de presentificação.
De acordo com Gilles Mora e Claudia Nori, a ideia de imagem fotográfica é uma ponte para o presente, um déjà vu, conforme defendem na sua obra L’été dernier: manifeste photobiografique de 1983, na qual é usada, pela primeira vez, a expressão fotobiografia. Em tal construção literária, a fotografia ocupa o papel principal com a intenção de criar uma narrativa visual em que se deseja destacar aspetos do sujeito/objeto da fotobiografia. Mas não só: o Chronos – o tempo por si – transforma-se em Kairós, um tempo distendido que, no que à fotobiografia diz respeito, exercerá a função de memória e de presentificação da figura biografada.
Chronos (Χρόνος) ordena o irreversível suceder que se opera entre o passado, o presente e o futuro, de modo que nada do que ocorreu possa vir a ser desconstruído, assim como não é possível visualizar com nitidez o que virá a acontecer. Kairós (καιρός, o “momento certo” ou “oportuno”) figura a distensão temporal, na qual o presente se inscreve na duração memorialística dos eventos passados e nas variações imaginativas sobre as projeções futuras […] (Prevedello, 2018: 278-279).
Assim, desde a sua montagem, a fotobiografia é – mais do que uma obra que relata a vida de alguém recorrendo a fotografias –, um acontecimento, que tanto pode potenciar a experiência (narrativa) do leitor, como trazer problemas de construção de historicidade no qual a fotografia é índice. As fotografias selecionadas não ilustram somente, não enriquecem somente: dividem o protagonismo na comunicação, ou seja, o ato de colocar em comum a mensagem.
Se, ao longo do século XX, dá-se colisão entre o estruturalismo linguístico e a semiótica, aprofunda-se a tentação de procurar noutros sistemas simbólicos diferentes do linguístico a mesma presença de dois níveis de análise e de decomposição (o que se tem vindo a verificar no fotolivro), incluindo recorrer à dupla articulação (propriedade da linguagem verbal) como modelo normativo e instrumento heurístico, alimentando o processo de significação que se encontra na obra de arte e que lhe confere uma centralidade indispensável.
Do ponto de vista recetivo, no todo que é o livro, a leitura torna-se uma experiência háptica e sensorial, em virtude de a fotografia poder colher o efeito cinético. Todos os materiais criam e recriam uma interface; portanto, o fotolivro vive de uma complementaridade de linguagens e, por consequência, de uma polifonia que lhe é própria, para além das componentes exclusivamente visuais e linguísticas. Por isso, Badger afirma que o fotolivro é: “um tipo particular de livro fotográfico, em que as imagens predominam sobre o texto e em que o trabalho conjunto do fotógrafo, do editor e do designer gráfico contribui para a construção de uma narrativa visual” (apud Ramos, 2017: 34, itálico nosso). O mesmo se aplica à fotobiografia, com o acréscimo, neste caso, do autor dos textos, que pode ou não confundir-se com a figura do editor.
Colberg estabelece alguns procedimentos básicos que devem nortear a construção do fotolivro: definir o conceito central do livro; editar as fotografias de origem; sequenciar a edição; produzir a componente de texto; criar o design do livro (layout das fotografias, design dos componentes textuais); decidir do fazer (materiais, impressão e encadernação); preparar arquivos de pré-impressão; imprimir (incluindo, idealmente, conferências de impressão); encadernar (Ramos, 2017: 23).
Se é assim, os caminhos da fotobiografia são mais fechados e os intervalos entre a fotografia e o texto são mínimos. Além disso, a interação da fotografia com a linguagem verbal é mais extensiva, por se tratar de uma narrativa que, apesar de multimodal e baseada, sobretudo, num processo de montagem, é necessariamente textual, organizando-se maioritariamente numa ordenação cronológica, cujos saltos anacrónicos, apesar de possíveis, costumam ser pontuais.
No entanto, apesar de ambas as modalidades serem evidentemente narrativas, pretendemos demonstrar, também, um viés argumentativo inerente, sobretudo, à fotobiografia. Nela, é comum que a fotografia deixe de ser lida como uma forma de arte para adotar um caráter de testemunho, isto é, um ato político que começa na procura do encontro com a verdade: “a preocupação do documental será criar imagens que sejam lidas como referenciais e autênticas, recorrendo para tanto a técnicas e estilos associados ao realismo e que assegurem um ‘efeito-verdade’” (Ledo apud Mazzilli, 2020: 63).
Assim, se a biografia é considerada um género textual que muitas vezes se confunde com a noção de historiografia, a fotobiografia parece estar entre a biografia e o fotojornalismo: embora as imagens sejam utilizadas com objetivo documental e de conferir tons de verdade à narrativa, trata-se de um “efeito de verdade”:
O verdadeiro não é uma segunda natureza da fotografia: é somente efeito de uma crença que, em um momento preciso da história do mundo e das imagens, se ancora em práticas e formas cujo suporte é um dispositivo. O verdadeiro da fotografia-documento se estabelece pela diferença na comparação, de um lado, com o verdadeiro da pintura ou do desenho, e, de outro, com o da fotografia artística. As formas fotográficas do verdadeiro tendem a confundir-se com as formas do útil (Rouillé, 2009: 83).
A construção de um argumento participa de uma dupla temporalidade: o passado e o presente confluem em simultâneo quando o leitor percorre, nas páginas do livro, um percurso linear [2]. No presente da leitura, momentos passados são reanimados – há esse esforço da parte do autor –, uma vez que a história é anterior à narrativa. No entanto, Barthes em A câmara clara fala-nos de contramemórias: o “emolduramento” da fotografia não está, nem é hermético, nem permanentemente selado, apesar de a fotografia ser frequentemente lida como uma forma de testemunho.
Não obstante, a biografia é uma descrição que contém sempre ficcionalização, dá-se a recriação da imagem do biografado. Sofia Rosado no dicionário on-line E-dicionário de termos literários na entrada Biografia, chama-nos à atenção para o facto de que a Biografia deve assumir uma responsabilidade sem anular a imaginação, o que levaria à valorização da tarefa biográfica como tarefa artística. A cronologia, por sua vez, é sugerida enquanto evidência dos padrões de comportamento que confeririam forma e significado à vida do biografado (2009).
Deste modo, verifica-se de facto uma partilha e, por conseguinte uma reconfiguração na comunidade e na sua conjuntura cultural e histórica que advém da contribuição para a comunicação inerente ao alinhamento e cooperação ligado à organização das fotografias em continuidade que podem ser documentais ou artísticas. Se todo o texto é discurso, no fotolivro todas as fotografias também o são, assim, vislumbramos uma unidade interna da obra que comunica na soma das suas partes. Os fotolivros – e as fotobiografias – são relações de agenciamento (acoplamento de relações materiais a um regime de signos), nos termos de Deleuze e Guattari, nos quais há uma materialidade que se movimenta.
A imagem é o entrelaçamento de várias camadas de tempo, de lugares, de memórias, de culturas, de olhares, de sentidos e de afetos. Por isso, a imagem é múltipla, é um acontecimento, não tem um sentido garantido, único e verdadeiro; é falsa, é fluxo, é movimento. É um lugar de encontros e disputas, de repetições e diferenças. (Ramos, 2017: 95).
Na fotobiografia, seu grau de ficcionalização – na construção da narrativa – e de plasticidade – no plano da fotografia – articulam-se, de modo que haja uma sobreposição de camadas de criação artística: a da fotografia ela mesma, da articulação da fotografia com o texto, e da composição material que reúne todos estes elementos que a torna um objeto de arte per se. Essa articulação, porém, possui um eixo comum que é a figura do biografado, normalmente descrito como objeto do trabalho – isto é, como tema. No entanto, propomos uma leitura que vislumbre a dimensão ativa do biografado nessa construção e a sua intervenção direta e indireta na obra, de modo que a sua própria caligrafia seja indelével na história que se quer contar sobre ele.
II.
Para verificar este processo partimos de um estudo de caso. Tomamos como objeto de análise a fotobiografia do escritor português José Cardoso Pires, intitulada José Cardoso Pires:Fotobiografia [3], da autoria de Inês Pedrosa, cuja 1.ª edição data de outubro de 1999 pela Publicações Dom Quixote.
A primeira justaposição e entrelaçamento de sentidos e linguagens inicia-se logo pela interseção entre os lados de dentro e de fora do livro: a sua publicação ocorre precisamente um ano após a morte do escritor, em 26 de outubro de 1998. Assim, a fotobiografia declara-se como uma espécie de homenagem e materialização de uma efeméride, uma vez que “subjaz, por princípio, ao projeto fotobiográfico um intuito de celebração e até de canonização que, em certa medida, afetam a feição crítica que é própria das práticas historiográficas strictu sensu.” (Reis, 2018: 185).
Sua organização é feita em quatro partes. São elas: Antes de começar, Uma vida, A oficina do escritor e Na memória dos escritores amigos, cujo conteúdo abordaremos mais detalhadamente adiante. Tal organização, porém, é particularmente interessante na medida em que estabelece relações transtextuais em diversos níveis. Nos termos de Genette, além da evidente dinâmica paratextual no interior da obra e hipertextual na relação do texto com a narrativa de vida do autor, esta fotobiografia inclui elementos de metatextualidade em sentido estrito, como crítica e/ou comentário sobre outro texto (Genette, 2010: 11-19), aspeto que desenvolveremos na análise da parte A oficina do escritor que, por conveniência de exposição, trataremos em último lugar.
É de se notar que a primeira parte tenha o título Antes de começar. Em forma de prefácio, a autora explica como foi o processo de construção do livro de modo amplo, desde o surgimento da ideia, planeamento, processo de escrita, seleção de imagens até àquilo que a autora pensa ser a opinião do próprio José Cardoso Pires sobre o livro caso tivesse vivido para vê-lo pronto. É neste introito que o leitor toma conhecimento de uma característica central da obra: o autor participou ativamente da elaboração da sua própria fotobiografia. Embora não tenha sido o responsável pela escrita do texto ou pela sua organização final – já que faleceu antes de o trabalho estar terminado –, foi fundamental no seu processo de preparação.
Deste modo, se não se pode dizer que o livro seja rigorosamente uma autobiografia, também não se pode dizer que tenha o distanciamento necessário para que não possa ser assim classificado. Isto significa: Cardoso Pires não foi o autor desta biografia por não assumir o pacto essencial para a afirmação de uma obra como autobiográfica, designadamente o facto de autor, narrador e personagem serem a mesma pessoa (Reis, 2018: 36). No entanto, foi ativo em vários aspetos fundamentais para a estruturação da obra, dentre os quais a cessão e escolha das imagens que viriam a ser utilizadas: “Só um mês depois da morte dele fui capaz de pedir à Edite que folheasse álbuns e papéis, em busca de imagens que, segundo as próprias anotações dele, faltavam.” (Pedrosa, 1999: 14, itálico nosso). Mais do que a anuência do biografado – pressuposto das biografias autorizadas –, a seleção da componente imagética da obra e a escrita dos seus paratextos (neste caso, as legendas das fotos) foram feitas por José Cardoso Pires.
Além disso, também a ideia da produção desta fotobiografia teve a participação do autor, como esclarece Inês Pedrosa – “A ideia da Fotobiografia descontraiu-o, não tanto por se tratar de um livro sobre ele, mas sobretudo porque era um livro que ele ainda podia fazer” (11, itálico nosso) – apesar de ter partido do seu editor, Nelson de Matos, em 1997. A biógrafa, por sua vez, foi por ele escolhida, o que revela a sua interferência, mesmo que indireta, na escrita do texto, por conhecer pessoalmente a autora: “E ofereceu-me […] a realização deste livro, numa profissão de fé que, mais que honrar-me, me comoveu desmedidamente. É que eu gostava muito do Zé Cardoso Pires […]” (11); e por conhecer seu estilo de escrita: “E, quando o meu segundo romance saiu, falou dele a toda a gente com suprema gentileza.” (12).
Isto posto, é possível pensar que esta Fotobiografia habita em uma espécie de entrelugar, pois: (i) como biografia já apresenta o problema inerente a tal género textual de tentar ordenar e sistematizar a vida, artifício narrativo que tende para uma construção ficcional: “[...] tratar a vida como uma história, isto é, como narrativa coerente de uma sequência significativa e coordenada de eventos, talvez seja uma ilusão retórica […]” (Bordieu, 1996: 74, itálico nosso); (ii) como fotobiografia transita entre registos modais e, pela presença das imagens, pode abdicar de uma escrita narrativa strictu sensu: “Devido à sua economia interna, a fotobiografia eventualmente dispensa uma voz narrativa que a conduza, prevalecendo sobre essa voz a atitude editorial e o trabalho de montagem que articulam criteriosamente os materiais disponíveis.” (Reis, 2018: 184); (iii) como colaboração entre biógrafa e biografado não é exclusivamente pessoal para se dizer autobiográfica, mas não é suficientemente autónoma, como anteriormente referido.
Todas estas características próprias do género fotobiográfico são evidentes na segunda parte do livro, intitulada Uma vida. É neste segmento de maior extensão que a autora organiza os eventos significativos da vida do autor em ordem cronológica, sempre evidenciando o ano em questão. Inicia-se, como esperado, em 1925, com poucas lacunas de anos referidos – lacunas concentradas principalmente na infância –, sendo uma descrição da vida do autor ano a ano a partir do início da sua atividade literária em 1946. Há pontuais desvios analépticos que se referem a episódios no tempo fora do que estaria compreendido pela sua vida, por exemplo, uma foto do pai, datada de 1923; e a inclusão do ano de 1999, com referência às homenagens póstumas que o autor recebeu até a data da publicação do livro, mas sem alterações estruturais expressivas [4].
Figura 1.
No entanto, a parcela de texto produzido pela autora neste segmento é mínima. O texto é composto, basicamente, de citações de José Cardoso Pires retiradas de entrevistas diversas, com alguns recortes de críticas literárias e poucos episódios de escrita da biógrafa que não sejam para contextualizar uma fala de Cardoso Pires ou narrar um evento simples, e.g. “A 5 de Outubro nasce a irmã, Maria de Lurdes, que viria a tornar-se médica.” (1999: 21). Desta forma, grande parte do texto da Fotobiografia é escrito em primeira pessoa, de modo que a presença da voz de Cardoso Pires seja extensiva e não permita ao leitor um maior afastamento que lhe seria facultado com uma narrativa em terceira pessoa. A narrativa dos eventos é entrecortada – quiçá sobreposta – pela voz do biografado, que se manifesta sobre os eventos, comenta-os, exprime seus sentimentos em relação a eles:
No dia 8, depois de uma paragem respiratória e cardíaca, é internado no Serviço Neurológico do Hospital de Santa Maria, onde entra num coma profundo do qual não voltará a sair. […] “Eu tenho medo físico, não tenho medo da morte. (…) Tenho medo do sofrimento, da dor, e da humilhação. Da morte, nada. […] Por isso é que eu tenho uma grande admiração da eutanásia, eu tenho um grande respeito pela morte ajudada, e um grande desprezo pelos tais heróis do sacrifício.” Morre na madrugada de 26 de outubro, às 2.30, depois de um coma de quase quatro meses. (1999: 127)
Figura 2.
Esta presentificação da voz do autor reforça a própria ideia de presença proposta pelas imagens da fotobiografia, como forma de (re)experienciar os momentos passados pelo seu registo visual. Ademais, todo o texto é escrito no tempo presente, do “José Augusto Neves Cardoso Pires nasce, no dia 2 de Outubro” (19) ao “Morre na madrugada de 26 de Outubro” (127). O recurso da escrita no presente permite que a voz de José Cardoso Pires insira-se de maneira natural, de modo que o leitor não sinta estas transições em demasia. Outrossim, alarga o presente – nos termos de Gumbrecht – de modo que este tempo possa conter: a vida do autor em texto; a vida do autor em imagem; a intemporalidade da sua obra; a diacronia dos seus escritos dispersos; algumas das variadas leituras sobre a sua obra; e a arquitetura da própria produção da Fotobiografia. Por fim, o presente da leitura está impregnado de um passado que insistentemente apresenta-se como presença, reificado no objeto-livro que, por sua vez, promove a experiência de presentificação material do passado através da linguagem (Gumbrecht, 2009: 18-19) – seja ela verbal ou não-verbal.
Na composição polifónica que neste livro se desenvolve, acrescem dois segmentos subjacentes (ou a terceira e a quarta parte) da Fotobiografia. O primeiro tem o título A oficina do escritor e contém um único texto: O cirurgião das palavras, de Inês Pedrosa. O segundo, por sua vez, intitula-se Na memória dos escritores amigos e é composto por testemunhos de António Lobo Antunes, Armando Silva Carvalho, Eduardo Prado Coelho, Lídia Jorge, Maria Lúcia Lepecki, Antonio Tabucchi, Pedro Tamen e José Carlos de Vasconcelos, alguns dos quais inéditos.
Esta seção – a última do livro – é, assim como a introdução, composta unicamente por textos verbais, em um curioso movimento que parece querer unir as extremidades. As regras de composição visual que se aplicam àquilo que é metadiscursivo – nomeadamente o prefácio – são estendidas aos relatos dos escritores amigos, muito embora não houvesse nenhum prejuízo em associar, por exemplo, o texto de Tabucchi (originalmente publicado no Jornal de Letras em novembro de 1999) a uma fotografia dos dois amigos a conversarem em 1998, esta que surge como a última fotografia da seção Uma vida.
Figura 3.
Uma possibilidade de entendimento quanto à tal escolha editorial seria o facto de não se querer associar as imagens do escritor a textos póstumos [5] sobre ele, de modo a restringir as imagens de Cardoso Pires ao seu período de vida e assumir uma postura bastante rigorosa quanto ao carácter documental de uma fotobiografia. Esta hipótese, no entanto, não se pode sustentar ao levar em consideração a terceira parte – A oficina do escritor – cujo texto, datado de julho de 1999, é atravessado de imagens: fotografias, reproduções de manuscritos, cartões-postais, bilhetes, recortes de jornais e demais documentos que outrora pertenceram a José Cardoso Pires. Assim, compreende-se que a quarta seção da Fotobiografia seja uma recolha de material (textos) sobre Cardoso Pires, enquanto a terceira caracterize-se como uma recolha de material (imagens) de Cardoso Pires para a produção de um texto sobre o escritor que não pertença à disposição linear de Uma vida, mas possa se firmar como texto independente.
III.
A oficina do escritor começa por uma intertextualidade no seu próprio título. José Cardoso Pires, em 1977, publica E agora, José? [6], uma coletânea de ensaios dividida em cinco partes, sendo a terceira delas a Visita à oficina: o texto e o pré-texto. É neste segmento que o autor convida-nos aos bastidores da sua própria escrita. Primeiro, fá-lo através do ensaio Memória Descritiva, no qual percorre a escrita d’O Delfim, de 1968, entre comentários, esquemas e diagramas que criam uma névoa de ambiência para conhecer o percurso de escrita daquele romance que já é em si “o fotograma de uma ambiência” (2003: 122). Depois, através do ensaio Técnica do golpe de censura e respetivo Post Scriptum, reflete sobre a influência da censura na escrita e na vida, como certa “sintaxe do pensamento colectivo” (2003: 141).
Esse registo ensaístico, que pouco se deixa delimitar ou definir, é uma tónica da Visita à oficina e – talvez por contágio – está imbuído na escrita de Inês Pedrosa em O cirurgião das palavras, de forma que nos pareça acertado chamar de ensaio tal texto considerando a essência da construção deste género:
O ensaio reflecte o que é amado e odiado, em vez de conceber o espírito como uma criação a partir do nada, segundo o modelo de uma irrestrita moral do trabalho. Felicidade e jogo são essenciais. Ele não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito e lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim (Adorno, 2003: 16-17).
Misto de testemunho, crítica literária e biografia, agora com mais nítida assinatura da biógrafa – seja no estilo, seja nas imagens que escolhe –, tem uma tese a defender, mas destaca-se principalmente pela clareza quanto à dimensão afetiva que é subjacente à escrita do texto, pelo que lembramos das palavras da própria autora no seu romance Nas tuas mãos, através da personagem Camila: “Pela primeira vez, senti que a fotografia podia ser uma marca de diferença, a assinatura de um olhar, e não apenas um método de garantia póstuma da realidade.” (2009: 132).
O ensaio, portanto, de Inês Pedrosa versa principalmente sobre a produção literária de José Cardoso Pires, menos preocupada com o onde e quando (tarefa da narrativa fotobiográfica em si), e mais concentrada no como. Sendo assim, constitui-se como um tipo de análise e interpretação de uma bibliografia com o propósito de desenhar um perfil do estilo do escritor, que precisa consolidar-se como um estudo e, necessariamente, apoiar-se em argumentos que possam validar a tese que defende.
É neste ponto que o texto de Inês Pedrosa adquire determinada peculiaridade: pelo contexto em que se insere, estabelece-se como uma espécie de crítica literária na qual as imagens assumem um papel argumentativo fundamental na relação com o texto escrito, sem assumir papel ilustrativo, mas complementar. Isto é, fazem parte da constelação de argumentos; corroboram a tese, mas não estão necessariamente vinculadas a outros argumentos escritos.
Exemplifiquemos. O título O cirurgião das palavras aponta para uma característica patente da obra cardoseana, o seu “austero gosto do rigor” (Pires, 2003: 22): “Batia nas palavras, tratava-as mal para as obrigar a ripostar, para as impedir de morrer. […] Deixava-as no tutano e depois tornava a enchê-las minuciosamente, uma, duas, vinte vezes.” (Pedrosa, 1999: 133). Para demonstrar esta característica, a autora compara trechos de duas versões do conto Amanhã se Deus quiser, que reproduzimos parcialmente: “«Sábado à noite, a minha irmã não ia ao Instituto. Embora o doutor a tivesse avisado de que nunca, mas nunca, deveria trabalhar de noite» […] (versão 1952)” e “«Sábado à noite a minha irmã não ia às aulas do Instituto. Embora o médico a tivesse avisado de que nunca, mas nunca, deveria trabalhar ao serão» […] (versão 1963)” (114).
Este tipo de análise comparativa, no entanto, exigiria um minucioso estudo que confrontasse sucessivas edições de textos para apontar as alterações e, além disso, deixaria de fora o material não publicado (como manuscritos) que, neste caso específico, é essencial por se tratar precisamente de uma análise sobre o método de escrita. Para solucionar esta questão, o leitor é confrontado, por exemplo, com duas páginas inteiras de um manuscrito inédito de um guião para O Delfim, provavelmente de 1972 [7], repleto de anotações, rasuras, acréscimos posteriores. Esta página surge logo após afirmações como “Cada um dos seus livros foi burilado ao milímetro” ou “um dos trunfos do génio – e da personalidade – de Cardoso Pires foi esse: uma recusa firme diante da separação entre sonho e pensamento.” (136). A imagem condensa os argumentos necessários para sustentar estas asserções pelo remate visual, seja na demonstração do esmero na escrita, seja pela exemplificação com O Delfim, cuja narrativa é um emaranhado de memórias, sonhos e pensamentos do narrador.
Figura 4.
Em outro exemplo – que bem ilustra o título da seção, mais do que do ensaio que a compõe – vemos o caso Alexandra Alpha. A autora afirma que “Em Alexandra Alpha mais do que em qualquer outro, Cardoso Pires pôs em campo os seus dotes de Sherlock Holmes: antes de se pôr à escrita, coleccionou provas” (135) e, nas páginas dedicadas ao comentário deste livro, dispõe evidências de personagens do livro que teriam sido inspiradas por figuras da realidade.
Figura 5.
Figura 6.
Deste modo, é possível dizer que a autora, em certa medida, parece seguir os passos do escritor: mune-se de registos documentais para a construção de uma figura que se chama José Cardoso Pires, evidentemente inspirada por um indivíduo da realidade, mas que não deixa de ser um construto textual, produto de dispositivos de figuração (Reis, 2018: 166).
Finalmente, é na flagrante ficcionalização do escritor José Cardoso Pires que este texto se encerra. Em primeiro, com uma página contendo um único parágrafo centrado:
Em resumo: José Cardoso Pires escrevia com a mão de um Christian Barnard e a precisão cromática de um Caravaggio, escapando ao logro infinitamente contido em qualquer ideia geral. Captou para a literatura o lume vertiginoso disso a que, sem saber bem do que falamos, chamamos vida.” (148).
Na página ao lado, uma fotografia em preto e branco [8]: José Cardoso Pires ao lado da estátua do gigante Adamastor, em Lisboa, ambos com os olhos postos da direção do Tejo, ambos com o mesmo perfil, ambos com a mesma grandiosidade – “Lá vai o português, lá anda. Dobrado ao peso da História, carregando-a de facto, e que remédio – Índias, naufrágios, cruzes de padrão (as mais pesadas). Labuta a côdea do sol a sol e já nem sabe se sonha ou se recorda.” (Pires, 2003: 13). Se interpretamo-lo como Camões ou como Adamastor (não que sejam propriamente figuras antagónicas), isto cabe ao leitor-espectador – “a consciência, afinal, do que há de complexo e subjectivo numa comunicação que não se fabrica por preceitos fixados, que é individual e se destina aos outros e que, logo, irá ser recriada por alguém – o leitor.” (Pires, 2003: 45). Cremos que esta seria a opção do próprio autor, que preferia “correr o risco de jamais atingir o ponto impreciso da clareza do que pecar por excesso, ultrapassando-a” (Pires, 2003: 100). Fica, assim – independentemente de qualquer narrativa fotobiográfica que se construa – a pergunta sempre por responder, como é próprio da literatura e de toda arte. Afinal: Quem és tu?
Figura 7.
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NOTAS
[1] Neste artigo não se pretende debater se a fotobiografia é um subgénero do fotolivro; se são categorias distintas; ou ainda questões mais profundas, de caráter genológico, por não ser o nosso objetivo principal.
[2] De facto, a linearidade é um elemento chave na montagem da fotobiografia.
[3] Doravante referida por Fotobiografia ou JCPF. Todas as citações apresentadas neste texto foram retiradas da referida edição, bem como as imagens aqui apresentadas. Reservam-se todos os direitos de imagem aos autores.
[4] Vê-se na imagem reproduzida um exemplo de organização cronológica com claro propósito narrativo: as fotografias de 1984 e 1985 são sequenciadas de modo a apresentar José Cardoso Pires e três gerações de mulheres que fazem parte da sua vida – a esposa, uma das filhas e a neta.
[5] Excetua-se o poema de Armando Silva Carvalho, de abril de 1998, mas posterior ao acidente vascular cerebral de 21 de abril que deixaria José Cardoso Pires bastante fragilizado.
[6] Em uma espiral de intertextualidades, reitera-se que o título da obra cardoseana refere-se ao poema José, de Carlos Drummond de Andrade, publicado pela primeira vez em 1942.
[7] A data do guião é incerta por ter sido desconhecido por muitos anos, mas assumimos ser (pelo menos a última alteração) de 1972 pelo facto de a narrativa do livro se passar na mesma altura em que Cardoso Pires o escreve (1966/1967).
[8] Esta é a única fotografia deste livro sem nenhum tipo de referência contextual.
© 2021 Gabriella Mendes e Rita Gomes.
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