Entre texto e imagem: a morte como tema fotoliterário em Nadja de André Breton
Juliana Mantovani
INSTITUTO FEDERAL DE BRASÍLIA E UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
ORCID: 0000-0001-8362-1416
I. INTRODUÇÃO
Identificado por uma estética que se propõe penetrar nas profundezas do inconsciente e trazer à tona, pela expressão da linguagem, o verdadeiro pensamento, libertando assim a manifestação artística dos controles exercidos pela razão ou por quaisquer preocupações formais, o Surrealismo irrompe no seio dos movimentos de vanguarda que acenavam, no início do século XX, para rupturas extremas com o passado e para sérias contestações do conjunto de valores vigentes até então.
Das propostas inovadoras promovidas pelo movimento nas primeiras décadas do século XX, destaca-se sem dúvida a publicação de Nadja (1928), obra fundamental de André Breton e decisiva para o curso do Surrealismo. Nessa sua primeira deambulação pela narrativa em prosa, Breton construiu uma obra cujos limites desafiam a crítica literária até nossos dias, uma vez que nessa espécie de ensaio autobiográfico fragmentado, encontramos uma estrutura híbrida, em que se evidencia o consórcio palavra-imagem fotográfica e na qual se busca reproduzir, por meio de uma escrita posterior aos eventos narrados, a instantaneidade – própria da fotografia – em sua parte construída em formato de diário.
A leitura de Nadja possibilita, assim, a reflexão e a análise crítico-literária por múltiplos eixos e campos de estudo, tendo em vista que se trata de uma obra em que é possível notar a convergência de inovações temáticas e estéticas. Em termos gerais, pode-se afirmar que o leitor encontra uma narrativa com fortes traços autobiográficos, na qual se inserem discussões críticas e teóricas acerca das transformações artísticas e culturais que estavam em curso por toda a Europa no início do século XX, que confluíam e se encontravam no centro de Paris. André Breton encontra-se, dentro e fora de sua obra, permeado por esse tempo histórico e por esse cenário, em que a modernidade atingira níveis visíveis, inusitados e irrevogáveis nas composições das obras artísticas. E a composição dessa sua obra, em consonância com as mudanças que rodeavam o escritor, discute e representa as transformações e as novas propostas estéticas.
Em estreita relação entre literatura e fotografia, parece certo que em Nadja reverberam os conceitos de traço do real e da eternização da ausência tão caros, aliás, tanto aos estudos fotográficos quanto aos literários. Nessa perspectiva, apoiados nos Estudos Fotoliterários [1], buscaremos analisar e enfatizar neste artigo a construção da temática da morte, analisada no todo fotoliterário da obra, o que poderá nos auxiliar a estabelecer laços entre o texto e as imagens e a vislumbrar intercessões entre a captura do instante e a eternização da morte.
II. A morte como tema fotoliterário
Incitados pela leitura de Daniel Grojnowski (2002), para quem as fotografias de pessoas, objetos e lugares fazem de Nadja uma narrativa poética “habitada de presenças” (Grojnowski, 2002: 171), mas assumindo a fotografia como um acontecimento repleto de presença-ausente, passamos a desconfiar dessas presenças fotográficas e a concebê-las como marcas e sinais do vazio que percorre suas páginas.
Com efeito, se pensarmos em termos temáticos, esse récit bretoniano evoca em palavras e imagens a morte latente, outro tópico contumaz dos enunciados da jovem moça. Como mote do enredo ou como imagem fotográfica, em nossa interpretação a morte ancora e dialoga durante toda a obra com o trágico desaparecimento final e com as lacunas interiores daquela que dá título ao livro e daquele que busca, em suas linhas, saber quem é. Para nós a morte percorre toda a obra, a começar pela sutil menção à Maison Henri Bourniol, casa funerária localizada abaixo do Hôtel des Grands Hommes, como se pode notar já na primeira fotografia do livro (“Vou tomar como ponto de partida o Hôtel des Grands Hommes [...]”, Breton, 2007: 30).
Nessa esteira, lembremos que, na estrutura composicional da obra, a pessoa-personagem Nadja é colocada em cena sob o signo do Manoir d’Ango (representada na segunda fotografia da obra), local de onde o narrador escrevia sua obra e de onde “poderia, enquanto [se] ocupasse, à [sua] vontade, de [seus] afazeres, também caçar o bufo-real” (Breton, 2007: 29 [2], grifo meu), e também da imagem da queda da pomba que sangra de verdade, ferida ou morta portanto.
No que concerne à terceira fotografia, substituída da mesma forma que a segunda na edição de 1963, é a Place Maubert que aparece registrada. Essa terceira imagem assinala de modo semelhante uma morte subterrânea, tendo em vista que pouco se vê da praça, e a ênfase da foto recai em verdade sobre a estátua de Étienne Dolet – morto queimado – e, pelo ângulo, sobre as coroas funerárias colocadas ao pé da estátua. Assim, a primeira parte da obra abre-se e encerra-se sob a égide do perecimento, da destruição, do aniquilamento. O mesmo se dará até o final dessa narrativa.
Semimorta (ou “alma errante”, que vaga em busca de “reencarnar”) é a jovem que vemos entrar em ação. Nadja, começo (e somente o começo) da esperança, aquela que sabe que não será senão “traço”, encontra-se desde o início da narrativa marcada pelo abandono e pela solidão. Ressentida e abandonada pelo amante de Lille e pelo “Grande amigo”, a jovem está entregue ao exílio, ao deserto das ruas habitadas (de presenças ausentes) e exposta à prostituição, ao tráfico de drogas e à loucura.
Dentre diversas analogias e correspondências, verificamos uma forte carga semântica negativa, sinistra e trágico-melancólica que recobre toda a obra, cujas marcas são numerosas, como o uso de termos tais quais: “angústia” e “fatalidade” (25), “violentamente incidental” e “solidão” (27), “testemunha assombrada” (28), “insuportável mal-estar” (29), “violência” (54), “repugnância inexprimível” (55) “sangue” (62), “obscuramente miserável” (65), “odeio” (68), “morte” e “morrido” (72), “decepcionada” (75), “estranhos” (76), “confusão” e “suspeitas” (77), “horror”, “medo” e “morrer” (79), bem como “estremecer” e “ameaça” (81), “queda” (82), “se assusta” (85), “começa mal” (87), “inquietação” e “silêncio” (88), “chora”, “ausência” e “sozinhos” (89), “expressão ignóbil” (91), “vertigem” e “dolorosa” (92), “noite”, “fogo” e “queime” (94), “umbral”, “Diabo” e “feiticeira” (95), “partida”, “temerário”, “desprezo” e “perdidos” (103), “chorei”, “chorava”, “violência horrível”, “desolava”, “socorro” e “ensanguentar” (105), “desastre irreparável” (107), “hospício” e “irritante” (126), “ameaçada”, “loucos”, “debilitante” e “perniciosa” (129), “evoluções tragicamente repentinas”, “doença”, “delituoso”, “delírio”, “assassinar” (130), dentre outros diversos.
São encontrados também circuitos metafóricos que se conectam ao longo da narrativa, como os sinais fúnebres que estão dispostos interligando a temática da morte e da desaparição nessa obra. Vejamos, por exemplo, que Marcel Duchamp é identificado como o autor de “Cimetière des uniformes et livrées” (39), ou ainda que outros “personagens” citados indiretamente, analogamente à Nadja – que enlouquece –, “perderam” a cabeça, foram decapitados ou mortos pela perda da “razão”: esses são os casos de Saint-Honoré e Saint-Denis (aludidos na poética topográfica da obra), ou Sainte-Solange (nome da personagem da peça Les Détraquées mencionada e descrita na obra;personagem suspeita, aliás, de participar do assassinato da jovem estudante no pensionato de meninas) e a Górgona, todos decapitados; ou mesmo Maria Antonieta, rainha guilhotinada, que assombra os pensamentos da jovem. Outros mortos são Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, referências implícitas resgatadas pela menção à vidente Madame Sacco e às “magníficas jornadas de pilhagem conhecidas como ‘Sacco-Vanzetti’” (140) em Paris. Esses dois anarquistas italianos, um trabalhador de fábrica calçados e um vendedor, foram condenados à morte e executados em 22 de agosto de 1927 (mesmo mês da escrita de Nadja) nos Estados Unidos, acusados injustamente por roubo e homicídios.
Ainda há a recorrências de quedas: a da pomba e a do chafariz no Jardim das Tulherias duplicada pela fotografia (83), ou mesmo a de M. Delouit pela janela, e a de um avião seguida de seu completo desaparecimento sem deixar rastros, que encerram a obra. Nadja, ela mesma, já não está mais presente quando esse livro é escrito, encontra-se agora ausenciada pelo asilo manicomial.
Há igualmente forte alusão às fogueiras – as que levaram à morte não somente Étienne Dolet, mas aquela, que, segundo Georges Sebbag (2004), habitava o espírito de Breton, ao declarar que fazia amor com Nadja, “como com Joana D’Arc” [3] (Sebbag, 2004: 7, cf. tradução minha). Combustível de fogueiras mortíferas, não é uma loja de lenha e carvão (35) que estampa a quinta fotografia, por cujas palavras do letreiro o narrador diz pressentir uma aparição?
Na fotografia Bois-Charbons (à página 35 de Nadja) [4], anuncia-se também a angústia da morte multiplicada de modo metafórico no aspecto sinistro e mortuário dos círculos das toras de madeira cortadas e dispostas tal qual cérebros a serem dissecados. Essa fotografia, na leitura de Annateresa Fabris, dialoga com a imagem do crânio de Rousseau, na estátua da primeira fotografia, transformado, para a crítica, na “própria alegoria da morte” (Fabris, 2013: 50).
Em uma percepção próxima à nossa, Jérôme Thélot, em Nadja, Violência e Moral (2008), faz uma leitura desse livro bretoniano a partir do tema da violência e demonstra os gestos violentos do narrador e de outros homens investidos contra a moça. O crítico reivindica ainda haver, além das narrativas de violências no texto, as violências da narrativa, isto é, a agressão que representa o apoderamento da linguagem sobre o outro. Na notícia do jornal, no desfecho da obra, por exemplo, Thélot reconhece o gemido de dor daquela pomba que cai e, pela falha da mensagem enviada ao avião, esse pesquisador conclui que “É na comunicação em si que algo está errado: foi na permuta intersubjetiva que se instalou a violência. Lembremos que Breton e Nadja não se entendiam” (Thélot, 2008: 792).
Para o crítico, essa obra deixa antever a ambiguidade da violência e do moralismo do narrador, ambiguidade que coincide “com o fato de que a narrativa, em seu todo, reflete e revela a violência” (Thélot, 2008: 785). Diante das exemplificações do crítico, como a cena em que o próprio narrador confessa que se viu reagir “com uma violência horrível à narrativa circunstanciada demais que ela me fazia de certas cenas de sua vida passada, das quais eu achava, muito exteriormente, que a dignidade dela não poderia ter saído de todo ilesa” (105), não resta dúvida da carga de agressividade que reforça nossa percepção acerca da dor, da morte e da ausência (nesse caso a ausência da personagem Nadja pela voz do narrador). Desse modo, para Jérôme Thélot, com o que concordamos, “não poderemos encarar as apreciações com que o poeta envolve Nadja senão como mistificações que contêm a violência” (Thélot, 2008: 786).
Notamos também a menção à morte que se vê no panfleto Un cadavre [Um cadáver] publicado em janeiro 1930 por ex-membros do Surrealismo e ex-amigos de André Breton contra ele. Nesse panfleto anti-bretoniano, retomando o nome daquele publicado em 1924 contra Anatole France, na ocasião assinado também por Breton, são evocadas as imagens metafóricas de mortos ligados a Breton, e seus autores, como Robert Desnos e Michel Leiris, acusam o escritor de caminhar sobre cadáveres, dentre eles o da jovem Nadja. Breton teria, a propósito, sofrido diversas acusações de ter contribuído para agravar o quadro mental da jovem, o que a teria levado ao internamento psiquiátrico, ao que ele negou, tendo respondido, no entanto, com laivos de culpa em algumas ocasiões [5].
Do mesmo modo, no texto narrativo, Nadja pressente e teme por duas vezes a morte, nas reflexões alucinadas da noite de 6 de outubro, na Place Dauphine, uma quando pensa nos mortos que ela clama ao afirmar que passa sob seus pés uma passagem subterrânea que vem do Palais de Justice e outra quando ela se recorda de uma cena e passa a narrar:
Que horror! Está vendo o que acontece com as árvores? O azul e o vento, o vento azul. Foi de lá, de uma das janelas do Hôtel Henri IV, e o meu amigo, o segundo de que lhe falei, tinha ido embora. Havia também uma voz que dizia: Você vai morrer, vai morrer. Eu não queria morrer, mas senti uma vertigem daquelas... com certeza teria caído da janela se alguém não tivesse me segurado. (79-81, grifos meus)
É igualmente a morte o que Nadja entrevê ao ler o poema de Alfred Jarry: “En mangeant le bruit des hannetons, c’havann. (Com pavor, fechando o livro): ‘Oh! Isto aqui é a morte!’” (72). É ainda um nome de uma pessoa morta, Lena, que ela recebe de um cliente americano que passa a assim chamá-la “em memória da filha que havia morrido” (72). A presença da morte e a latência do seu penoso desfecho assombram da mesma maneira os desenhos feitos pela jovem, dos quais alguns constam no corpo do livro analisado.
De seus desenhos, é possível notar em alguns deles, como em “A alma do trigo (desenho de Nadja)”, à página 128, objetos que remetem à violência e à morte. Notemos nesse desenho, por exemplo, as imagens que se assemelham aparentemente a facas ou objetos de corte e evidentemente as letras, “À mort”, estampadas ao fundo da imagem, que não deixam margem de dúvida sobre seu teor fúnebre.
Para Marguerite Bonnet [6] (1988), aliás, algumas afirmações constantes nas cartas da jovem demonstram a “clarividência” dela ou a sua lucidez plena acerca do que inelutavelmente ocorrerá em torno dessa relação amorosa que se estabelecia. Também sobre a presciência que ela e nós, leitores, temos do trágico desfecho e sobretudo da ameaça que o encontro com o narrador representa para ela, seus desenhos – como esse aqui citado – o reforçam.
Podemos observar que mesmo o desenho da “maravilhosa flor” que Nadja criou para Breton, “A flor dos Amantes” (109), manifesta em imagem, abaixo da união dos amantes pelos olhos, a ameaça que os espreita, representada pela serpente, pronta para devorá-los.
Acrescentamos ainda que um outro desenho (esse não reproduzido no corpo do livro, mas presente nos arquivos do autor) revela fortes marcas ou prenúncios do naufrágio da relação e da própria jovem. No referido desenho, feito em 1926, na mesma época dos demais que ilustram a narrativa, e encontrado no Arquivo do autor (disponível online em http://www.andrebreton.fr), vemos claramente que se trata de um retrato de André Breton feito a lápis, mesmo porque “várias vezes ela tentou fazer meu retrato” (110). O escritor aparece representado tendo na mão direita uma espécie de recipiente, um pássaro sob seu ombro direito e uma serpente enrolada em volta de seu rosto. Ademais, as palavras Le baiser qui tue [O beijo que mata][7] podem ser lidas em um semicírculo acima e circundando a sua cabeça. Se nos recordarmos, a ameaça e o medo da morte da jovem ecoam na narrativa igualmente sob a ressonância de um “beijo” na cena ocorrida na Place Dauphine (76-77).
Essa mesma relação entre o beijo e a catástrofe que se anuncia está sutilmente representada pelo tema da profanação do sagrado que subjaz o texto. Vejamos que, ao final do dia 7 de outubro, o narrador,
com respeito, [beija] seus lindíssimos dentes e ela então, lenta e gravemente diz, pela segunda vez, num tom pouco mais alto que na primeira: “A comunhão acontece em silêncio... a comunhão acontece em silêncio”. É que esse beijo, ela me explica, a deixa com a impressão de alguma coisa sagrada, em que seus dentes “fazem as vezes de hóstia”. (88, grifos meus)
Ora, essa cena por si só não é capaz de fazer figurar o prenúncio do desastre, do fracasso amoroso e de Nadja. Contudo, na datação seguinte, em 8 de outubro, o narrador menciona a chegada de uma carta de Louis Aragon enviada da Itália, que contém uma reprodução fotográfica de um quadro do pintor italiano Paolo Ucello, desconhecido até então pelo narrador. A obra intitula-se, por acaso, A profanação da hóstia. O narrador não diz mais nada a respeito. Entretanto, em mais uma coincidência aparentemente anódina, esse título faz reverberar as dualidades do sagrado e de sua profanação e, portanto, retoma a fala da jovem, sobre comunhão e separação. Profanada a hóstia, profanado o beijo (nos dentes de hóstia), profanada a união. Esse acaso objetivo é duplo no livro, já que Breton decide reproduzir logo depois, à página 90, a imagem da fotografia recebida. Esse evento fortuito sequer comentado pelo narrador certamente se constitui de mais um sinal da existência permanente dos acasos, mas também do afastamento e da desaparição do amor (que existiu?) e da jovem.
Se esse último desenho de Nadja, por não estar inserido no livro, extrapola qualquer possibilidade de impressionar o leitor e nele gerar a experiência de mau-pressentimento ou de incitar a sensação de correr por páginas que o conduzem a um final trágico, o mesmo não ocorre no que concerne à atmosfera fúnebre que perpassa o tom dos diálogos dos personagens, acompanhados todo o tempo de imagens (lisíveis e visíveis) sombrias, estranhas e lúgubres, cuja carga insólita não cessa de se repetir nas fotografias de lugares praticamente desertos.
III. O vazio no espaço fotoliterário: uma atmosfera fúnebre
Misto de presságios, sinais e apreensões, o que Nadja e o leitor sentem ao longo da narrativa assinala um destino trágico. Internada em 21 de março de 1927, ela passa por outros dois manicômios até ser transferida em maio de 1928 ao asilo de Bailleul, onde esse “gênio livre” (102), o símbolo da liberdade, a “indócil”, “alucinada”, “violenta” e “demente paranoica” [8] Léona permanece encarcerada por quase 13 anos, até a sua morte em 15 de janeiro de 1941, às 23h15, contando na ocasião com 38 anos, de modo análogo à Maria Antonieta. O narrador já o pressentia ao escrever ainda entre 1927 e 1928 que “Nadja era pobre, o que, no tempo em que vivemos, é suficiente para condená-la” (131). A jovem Nadja já bem o sabia. É isso o que ela demonstra saber ao dizer: “O fim do meu fôlego é o começo do seu” (108); é isso o que ela prenuncia ao escrever na carta de 15 de novembro de 1926: “você, você está aqui, mas a morte, ela também está, sim ela está aí atrás de você” [9]. Para nós, esse mesmo pressentimento aflige o narrador e impregna suas palavras, fazendo seu leitor experimentar uma sensação de mau presságio. É assim essa mesma atmosfera fúnebre, essa impressão latente da morte, o que acompanha e encobre integralmente esse livro.
Em nossa leitura, esse clima de melancolia funérea é reforçado na constituição da obra pela recorrência das imagens de espaços urbanos desertos. Desse modo, a ideia de ausência, de um vazio a ser preenchido, é apresentada e reiterada sob a forma de uma atmosfera, uma aura lúgubre e triste que se repete, na nossa interpretação, e atravessa a narrativa pelas fotografias dos espaços das ruas.
Se nos recordarmos dos temas transicônicos expostos e demonstrados por Jean Arrouye (1983), facilmente nos reencontraremos com as temáticas da partida e do recomeço, presentes tanto no texto quanto nas imagens do livro. De modo complementar, parece-nos assim que há uma construção progressiva na trajetória fotoliterária, que vai da morte (desde aquela foto já assinalada, a primeira do todo, com a imagem da casa funerária, passando por cada uma dessas marcas e signos recorrentes da morte) até o recomeço, designado, agora na última fotografia (142), pela placa indicativa Les Aubes (“As alvoradas”), que responde ao tema da ressurreição amorosa simbolizada pelo novo amor que surge ao final do livro.
Como em um filme passado em sentido inverso, na interpretação de Robert Pujade, esse livro inicia onde começara a sua escritura e termina na imagem em que figura “uma ressurreição, termo que passa também pela tradução do nome de Nadja?” [10] (Pujade, 2015: 155). Por um lado, a esse percurso, que caminha rumo ao novo início, equivale um cenário repleto de imagens fúnebres e desertas. E por outro, se é possível se falar em recomeço e ressurreição, em aurora, alvorada, há que se falar forçosamente em fim, morte e perda, em uma profusão infinita de ausências que compõem essa obra.
No decorrer dessa trajetória, então, o leitor se depara com um catálogo fotográfico permeado de espaços desabitados, de zonas obscuras e de uma ambientação melancólica, próxima de uma atmosfera de crime – ou de local de crime. Sejam desertos ou frequentados, todos os espaços estampados em fotografias nessa obra permanecem, conforme as palavras de Arrouye, “lugares da ausência” (Arrouye, 1983: 136). E, nesse sentido, as fotografias dialogam e reverberam, complementando o que diz o texto.
Nessa perspectiva, como bem observa Walter Benjamin, em sua Pequena história da fotografia (1987), as fotos do célebre fotógrafo Eugène Atget buscavam “as coisas perdidas e transviadas” (Benjamin, 1987: 101) e representavam o mais insólito e perdido no vazio do tempo que traga tudo ao redor. Benjamin enfatiza ademais a característica marcante de suas fotografias, em que “curiosamente quase todas essas imagens são vazias. Vazia a Porte d’Arcueil nas fortificações, vazias as escadas faustosas, vazios os pátios, vazios os terraços dos cafés, vazia, como convém, a Place du Tertre” (Benjamin, 1987: 102).
Vazias as imagens de Atget, desabitadas e desertas são também as fotografias de Boiffard, inspiradas em um imaginário já tornado familiar pelas lentes daquele fotógrafo da virada do século, o que não deixam negar as fachadas de cafés e de lojas vazias que vemos em Nadja. Na apreciação de Daniel Grojnowski (2008), com toda a evidência as fotografias de Boiffard que compõem esse livro se parecem muito com as formas de visão que tanto agradavam a Eugéne Atget, esse “explorador do cotidiano” (Grojnowski, 2008: 437), a ponto de ser possível acreditarmos que certos clichês se tratem por vezes de “pastiches-homenagens” a esse fotógrafo. Acerca dos enquadramentos fotográficos de Atget, o que podemos estender para a leitura de Boiffard, segundo Benjamin analisa,
os lugares nas imagens não são solitários, e sim privados de toda atmosfera; nessas imagens, a cidade foi esvaziada, como uma casa que ainda não encontrou moradores. Nessas obras, a fotografia surrealista prepara uma saudável alienação do homem com relação a seu mundo ambiente. (Benjamin, 1987: 102)
E essa mesma renúncia e esvaziamento do rosto humano assinalado na fotografia atgetiana é perceptível nas imagens que vemos acompanhar, como em um cenário fúnebre, os transeuntes Breton e Nadja; um esvaziamento do rosto humano que corrobora para a criação de uma atmosfera de crime – e de sacrifício. É essa a interpretação de Benjamin sobre a fotografia surrealista de Atget, porquanto, para esse teórico, à medida que as câmeras fotográficas tornam-se menores e mais aptas a captarem o efêmero e o secreto, seus efeitos de choque paralisam o espectador. Walter Benjamin finaliza esse seu artigo ao apresentar sua peculiar metáfora do “local do crime” ao dizer que
Não é por acaso que as fotos de Atget foram comparadas ao local de um crime. Mas existe em nossas cidades um só recanto que não seja local de um crime? Não é cada passante um criminoso? Não deve o fotógrafo, sucessor dos áugures e arúspices, descobrir a culpa em suas imagens e denunciar o culpado? (Benjamin, 1987: 107, grifos meus)
Essa metáfora é ainda retomada em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1987), ao serem conduzidas as suas reflexões sobre a perda da aura e a ascensão do valor de exposição da fotografia, que sobrepõe pela primeira vez o valor de culto. Nesse excerto, mais uma vez Benjamin analisa a arte de Atget em termos de recusa da forma humana e, acrescentamos, de certo caráter arquivista, de criador de um inventário da capital. Para esse crítico,
Com justiça, escreveu-se dele que fotografou as ruas como quem fotografa o local de um crime. Também esse local é deserto. É fotografado por causa dos indícios que ele contém. Com Atget, as fotos se transformam em autos no processo da história. Nisso está sua significação política latente. (Benjamin, 1987: 174, grifos meus)
Esses dois fotógrafos urbanos, ambos flâneurs e andarilhos, são fisionomistas da cidade. É inclusive incontornável constatar a semelhança da estética de Boiffard e Atget, o que reforça nossa hipótese na leitura das imagens em Nadja e que pode ser contrastado por alguns exemplos, dos quais citaremos ao menos três. Observemos, primeiramente, “Boulevard Saint-Denis (16e arr.)”, de 1926, de Atget [11], que é facilmente identificada como inspiração pelo enquadramento, pela presença do monumento e pelo uso do obturador aberto, que não capta plenamente as pessoas, mas os rastros de seus movimentos em flou, conforme também usado por Boiffard na fotografia da Porte Saint-Denis inserida em Nadja (39).
Vejamos ainda a similitude evidente de traços estéticos na escolha de motivo artístico, bem como no enquadramento e nas técnicas de captura da imagem nestes dois pares de fotos: as fotografias de vitrines de lojas, Camées Durs, à página 96 de Nadja, de Boiffard, e “À grappe d’or, 4 place d’Aligre (12e arr.)”, de 1911, de Eugène Atget [12]; e ainda a fotografia de Boiffard, da fachada da brasserie À La Nouvelle France [13] (74), e a de Atget, “Café [Bar de Champigneulles] Avenue de la Grande Armée” [14], 1924-1925. A comparação dessas imagens nos ajuda a compreender como as fotografias em Nadja atuam como auxiliares na construção dessa cidade esvaziada e dessa atmosfera de tédio e de melancolia, desse clima fúnebre típico das cenas de crime.
Dessa maneira, confirmada a recorrência de imagens de lugares desertos e a proximidade temática e estética entre Atget e Boiffard, cada uma das fotos de Nadja não apenas constrói um mapa topográfico e simbólico da metrópole de Paris, mas elas em conjunto constituem um mapa de indícios das mortes, ausências e apagamentos, temas-sintomas dessa obra. É impossível não reconhecermos a forte carga insólita que as imagens de lugares desabitados fornecem e amplificam, harmonizando-se aos diversos exemplos de recorrências dos temas já verificados. A narrativa apresentada em Nadja é revestida de uma aparência bruta e composta de tal modo que, ao acompanhar o texto, dá ao seu leitor a sensação de estar diante de “uma cena de crime da qual não se teria ainda levantado e classificado todos os indícios” [15] (Nachtergael, 2008: 103), para usar os termos de Magali Nachtergael.
Em uma perspectiva análoga, Daniel Grojnowski já houvera identificado nas fotografias de Nadja a reiterada presença de zonas obscuras e também a imposição de uma forma de “topografia imaginária”, isto é, a composição de um repertório de imagens fotográficas da cidade que acompanham o leitor ao longo de toda a narrativa, recolhendo e recenseando os lugares familiares à maior parte dos parisienses que se prestam ao exercício da flânerie, mas que “impõem também uma topografia imaginária, privilegiando alguns aspectos escolhidos: as fachadas dos imóveis, as estátuas, as vitrines de café, de boutiques, as ruas desertas, as praças, os espaços solitários” [16] (Grojnowski, 2002: 151). Segundo nossas leituras, essa topografia imaginária é justamente um mapa de vestígios e prenúncios da desaparição e do vazio; trata-se assim de um cenário simbólico sombrio que acompanha a temática mortuária que perpassa o récit, um cenário cujas imagens fotográficas agem como amplificadores dos efeitos de ausência fúnebre apresentados no texto.
Outra ressonância incontestável em nossa leitura é a dos cenários lúgubres numerosos e espalhados pelas páginas de Bruges-la-Morte (1892), de Georges Rodenbach. Sem desejarmos fazer uma exaustiva comparação ou sugerir outros paralelos entre Nadja e BLM, o que decerto não seria nada improvável, é notório que em ambas as obras os dois jovens, o narrador André e o personagem Hugues Viane, encontram-se assombrados pelos traços da mulher desaparecida. Por um lado, enquanto no romance de Rodenbach a esposa já aparece morta desde o início do texto, em Nadja essa ausência e tais temáticas estão subjacentes, mas lá se encontram, como já o vimos. Por outro lado, nos dois livros, a cidade que recebe ênfase nas imagens, o espaço geopoético da narrativa, aparece quase desabitada e deserta.
Em Bruges-la-Morte, a ilustração fotográfica reflete o estado de alma de Viane e representa a própria alma da cidade, agora morta, uma vez que ela espelha a morte de sua esposa, reduzida aqui a suas relíquias, aos traços de sua ausência, do mesmo modo que em Nadja o enigma da mulher amada permanece em suas páginas pela reminiscência fantasmática de uma presença ausente, conforme Grojnowski defende. As imagens, ainda mais marcadas por uma atmosfera de irrealidade, saídas em maior parte de cartões-postais, embora estabeleçam conexões simbólicas menos numerosas com o texto do que as de Nadja, podem ser a essas comparadas por constituírem um clima que faz transparecer no texto e na imagem a mesma tonalidade.
Dotada de um “imaginário de rastro” [17], Grojnowski vê na ilustração de BLM um cenário que espelha a tristeza e a desolação do personagem na medida em que representa o caráter sepulcral da cidade-morta. Na leitura desse crítico, as sombras das torres da cidade projetam sobre a alma de Hugues Viana o estado de solidão, e “todas essas informações que emergem do texto verbal privilegiam componentes da ilustração que elas investem de sentido. O cenário documental se carrega de símbolos difusos, ao passo que ele modifica em retorno a atmosfera da narrativa” [18] (Grojnowski, 2002: 113).
Finalmente, e sem nos alongarmos nessa leitura aproximativa, relembremos uma imagem do romance de Rodenbach, à página 135, “Rue aux Laines”, dos irmãos Neurdein [19], fotografia reproduzida em similigravura, e notemos a observação de Daniel Grojnowski, para quem “não sem parentesco com a ilustração de Bruges-la-Morte, as fotografias de Nadja privilegiam as sugestões de um além que impregna os lugares ordinários tornados estranhos pelos refluxos do cotidiano” [20] (Grojnowski, 2002: 154). Em nosso entendimento, de modo semelhante ao defendido por Paul Edwards a respeito de BLM, o valor simbólico das fotografias, associado ao texto literário, também sublinham em Nadja “esse destino trágico oferecendo um paralelo visual, um relicário de melancolia e de morte” [21] (Edwards, 2008: 37).
Na fotografia destacada, como nas demais que compõem o itinerário de Hugues Viane, o mundo aparece desbotado pela imagem reproduzida em similigravura, imagem que é atravessada de uma “[m]élancolie de ces gris des rues de Bruges où tous les jours ont l’air de la Toussaint!” (Rodenbach, 1998: 129). Em preto e branco, numa visão irreal do mundo, o céu está sempre sombrio e uniforme; sem qualquer nuvem, segundo ressalta Edwards, “a duração parece se eternizar” [22] (2008: 39).
Nesse cenário mortuário, é novamente a ausência da figura humana o que completa o ar inquietante que angustia o leitor: “É Bruges na Bélgica, mas uma Bruges ‘composta’ (no sentido fotográfico do termo), apta a se tornar a cidade de Bruges-la-Morte e o cenário interior do personagem principal” [23] (Edwards, 2008: 39).
De modo equivalente às fotografias de Atget – e as de Boiffard em Nadja –, as imagens desse romance aparentam ser meramente documentais, “mas observadas de mais perto, elas deixam ver os elementos que ultrapassam o documentário [...] e sugerem alguma coisa como uma paisagem sonhada” [24] (Edwards, 2008: 39).
Dessa maneira, a atmosfera do texto bretoniano é reforçada na mesma tonalidade pelas imagens de lugares desertos, que remetem à melancolia e ao aspecto fúnebre, ao mesmo tempo que sugere, como numa cena de crime, que os indícios sejam recolhidos e analisados. Deparamo-nos assim com a ressonância de ausências por todas as partes dessa obra, do texto literário à imagem fotográfica, ambos impregnados e assombrados pela desaparição. Da Maison Henri Bourniol ao letreiro “Les Aubes”, o que vemos portanto fotoliterariamente é a reverberação de um clima de melancolia, morte e vazio. Também em Nadja, a fotografia e o texto, semelhantes a relíquias, são carregados da ambivalência de mostrar como real algo que não está mais presente.
Entre a perda e o resto, nesse ambiente de vazio a ser preenchido, em que perambula essa “alma errante” nas fronteiras da vida e da morte em busca de reencarnar em novas formas, a carga de tédio, ausência e desolação mistura-se nos textos e nas imagens a uma sensação fúnebre de inquietação, medo e abandono.
AGRADECIMENTOS
Este artigo faz parte dos resultados obtidos durante o desenvolvimento da tese “O instantâneo e o traço: por uma poética fotoliterária em Nadja, de André Breton”, cuja pesquisa contou com auxílio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, por meio da concessão de Bolsa de Doutorado Sanduíche.
REFERÊNCIAS
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BENJAMIN, Walter (1987). Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, vol. 1. Tr. Sergio Paulo Rouanet. 3 ed. São Paulo: Brasiliense.
BONNET, Marguerite (1988). “Nadja. Notices, Notes et variantes”. André Breton, Œuvres Complètes. Vol. I. Ed. Marguerite Bonnet. Paris: Gallimard. [1495-1565.]
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NOTAS
[1] Preferimos usar o termo Fotoliteratura para melhor situar o lugar em que se encontra a obra aqui estudada. Isto porque, conforme as considerações de Jean-Pierre Montier, o conceito Fotoliteratura pode ser utilizado para designar a totalidade de conjunções que desde os anos 1840 ligam “a produção literária com a imagem fotográfica, os processos de fabricação específicos que a caracterizam e os valores (semióticos, estéticos, etc.) que ela infere” (MONTIER, 2015, p. 20, tradução minha) [“la production littéraire avec l’image photographique, les processus de fabrication spécifiques qui la caractérisent et les valeurs (sémiotiques, esthétiques, etc.) qu’elle infère”]. Nesse sentido, consideramos que Nadja pode ser entendida e analisada como uma obra fotoliterária. Ver mais em Ortel (La littérature à l’ère de la photographie, 2002), Thélot (Les inventions littéraires de la photographie, 2003), Montier (Littérature et photographie, 2008, e Transactions photolittéraires, 2015), Grojnowski (Photographie et langage, 2002) e Edwards(Soleil Noir: Photographie et littérature des origines au surréalisme, 2008).
[2] Nadja, tradução brasileira de Ivo Barroso (2007). Dada a reincidência de citações dessa obra, as referências a ela serão indicadas apenas pelo número da página entre parênteses, salvo em menção contrária.
[3] No original, temos literalmente “il faisait l’amour comme avec Jeanne d’Arc”. Essa e as demais traduções serão seguidas da versão original em nota de rodapé e, caso em menção contrária, são de minha responsabilidade.
[4] As referências à paginação das fotografias do livro, salvo em menção contrária, referem-se a Nadja (2007).
[5] É possível recuperar essas informações a partir de Bonnet, 1988; Née, 1993; Mourier-Casile, 1994; ou ainda das cartas de Breton à Simone Kahn ou da entrevista de Suzanne Muzard que consta em Sebbag, 2004; dentre outras fontes e teóricos.
[6] Ver BRETON, André (1988). Œuvres complètes. Vol. I.
[7]Le baiser qui tue (Nadja, 1926). Lápis negro sobre papel vegetal, (35 x 25 cm). André Breton, La Collection. Œuvres graphiques. [catalogue de la vente, 2003] https://www.andrebreton.fr/fr/work/56600100529330 [31 mar 2021].
[8] Cf. relatórios psiquiátricos reunidos e comentados por Hester Albach. Ver: Albach, 2009: 255-262.
[9] No original: “toi tu es là, mais la mort elle aussi est là, oui elle est là derrière toi”.
[10] No original: “une résurrection, terme qui passe aussi par la traduction du nom de Nadja ?”
[11] Atget, Eugène (1926). Boulevard Saint-Denis (16e arr.). Photography. Gelatin silver printing-out-paper print. Approx. 16.5 × 21.6 cm. Museum of Modern Art – MoMA: https://www.moma.org/collection/works/42624 [31 mar 2021].
[12] Atget, Eugène (1911). À grappe d’or, 4 place d’Aligre (12e arr.). Photography. Albumen silver print. Approx. 22 × 18 cm. Museum of Modern Art – MoMA : https://www.moma.org/collection/works/39468 [31 mar 2021].
[13] Sobre este espaço narrativo, é relevante destacar também que a referência à brasserie e sua respectiva imagem representam um local de ausência, de não-encontro na obra. Esse deveria ser o ponto de encontro de Nadja, aquela que “não [é] encontrável” (89), e Breton naquele dia 6 de outubro às cinco e meia, porém não é lá que eles acabam por se encontrar. Ao caminhar pelos bulevares, seguindo pela calçada direita da Rue de la Chaussée-d’Antin, o narrador vê e segue Nadja, que, contudo, após eles terem entrado no “primeiro café que surge” (75), confessa a Breton que tinha “a intenção de faltar ao encontro marcado” (75).
[14] Atget, Eugène (1924-1925). Café, Avenue de la Grande-Armée. Photography. Matte albumen silver print from glass negative. Approx. 17.6 × 22.7 cm. Metropolitan Museum of Art – The Met Museum: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/283265 [31 mar 2021].
[15] No original: “une scène de crime dont on n’aurait pas encore relevé et classé tous les indices”.
[16] No original: “imposent aussi une topographie imaginaire, en privilégiant quelques aspects choisis: les façades d’immeubles, les statues, les devantures de café, de boutiques, les rues déserts, les places, les espaces solitaires” (cf. minha tradução).
[17] No original, temos “imaginaire d’empreinte” (Grojnowski, 2002: 110), isto é, imaginário de impressão, pegada, marca, rastro. Optamos por traduzir no texto como “rastro”.
[18] No original: “Toutes ces informations qui ressortissent au texte verbal, privilégient des composantes de l’illustration qu’elles investissent de sens. Le décor documentaire se charge de symboles diffus, alors qu’il modifie en retour l’atmosphère du récit”.
[19] Neurdein Frères. Ver mais no artigo de Paul Edwards (2000). The photograph in Georges Rodenbach's Bruges-la-Morte (1892). Journal of European Studies, Vol. 30. 71-89. https://doi.org/10.1177/004724410003011705.
[20] No original: “non sans parenté avec l’illustration de Bruges-la-Morte, les photographies de Nadja privilégient les suggestions d’un ailleurs qui imprègne des lieux ordinaires rendus étranges par les reflux du quotidien”.
[21] No original: “ce destin tragique en offrant un parallèle visuel, un reliquaire de mélancolie et de mort”.
[22] No original: “la durée semble s’éterniser”.
[23] No original: “C’est Bruges en Belgique, mais une Bruges «composée» (dans le sens photographique du terme), apte à devenir la ville de Bruges-la-Morte et le paysage intérieur du personnage principal”.
[24] No original: “mais observées de plus près, elles laissent voir les éléments qui dépassent le documentaire […] et suggèrent quelque chose comme un paysage rêvé”.
© 2021 Juliana Mantovani.
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