A fotografia e a palavra no livro de artista
Amir Cador
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
ORCID: 0000-0001-9471-3607
I. INTRODUÇÃO
Quando a palavra e a fotografia se encontram no livro estabelecem um jogo entre mostrar e dizer, entre a universalidade da palavra e a particularidade da imagem – a palavra árvore evoca espécimes diferentes na memória de quem ouve, enquanto a fotografia de uma palmeira não remete a qualquer outro tipo de árvore. A sua coexistência no espaço do livro modifica nossa percepção de tempo e espaço: a imagem fixa, eternamente igual a si mesma, modifica e é modificada pelas palavras que a acompanham.
O encontro pode acontecer em objetos semelhantes que receberam nomes diversos, de acordo com o papel desempenhado por seus elementos: fotoliteratura, fotolivro literário ou livro de artista. O primeiro diz respeito à presença da fotografia em obras literárias, o segundo aponta a presença de textos (na maioria dos casos, poemas) em livros fotográficos enquanto o terceiro aponta uma “nova arte de fazer livros” em que a palavra e a imagem são os meios escolhidos para apresentar uma obra em forma de livro.
A publicação em livro de um ensaio fotográfico é uma forma de apresentação completamente distinta de uma exposição, pois implica em uma diferença em sua estrutura, que deixa de ser espacial para se tornar espaço-temporal. Em uma exposição, mesmo que exista um roteiro a ser percorrido para visualizar os trabalhos em determinada ordem, prevalece a experiência de simultaneidade, várias fotografias situadas na mesma parede podem ser vistas ao mesmo tempo, enquanto no livro é a linearidade que predomina, pois o leitor vê uma abertura (página dupla) de cada vez. Mesmo que o leitor queira abrir o livro e começar em qualquer parte, sua estrutura material indica a ordem de apresentação estabelecida pelo fotógrafo, pelo designer ou editor.
A ordem de apresentação das fotografias não implica necessariamente a existência de uma narrativa. O começo, meio e fim de um livro de imagens em alguns casos é mera contingência, as páginas podem mudar de posição sem afetar o entendimento do livro, como acontece com as fotografias usadas por Hans-Peter Feldmann em seu livro Voyeur – o artista substitui algumas páginas ou modifica sua ordem de apresentação em cada nova edição do livro, que está em sua sexta edição. Compartilho o entendimento de Keith Smith (2015), que faz uma distinção entre livros visuais organizados a partir de grupos, séries e sequências: as imagens que fazem parte de uma série são determinadas pela imediatamente anterior e determinam por sua vez a imagem posterior, uma é a consequência lógica da outra, enquanto as imagens em sequência podem se referir ao livro como um todo, estruturado de modo que cada página é fundamental para o seu entendimento, cada nova imagem pode ter um rumo imprevisto na narrativa. Apenas as séries e sequências formam de fato uma narrativa, com um ponto de partida e um ponto de chegada bem demarcado.
II. Fotolivro e livro de artista
Existe uma zona de interseção entre os fotolivros e os livros de artista, o que também quer dizer que os dois termos não são equivalentes. O livro de artista é uma categoria mais abrangente que pode incluir o fotolivro, mas nem todo livro de artista é um fotolivro e nem todo fotolivro é um livro de artista [1]. Uma primeira diferença se refere à autoria, porque todo livro de artista tem um artista como autor, mas nem todo fotolivro tem como autor um artista. O editor ou curador pode ser o autor de um fotolivro, como no famoso The Family of Man, publicado como catálogo da exposição de mesmo nome, organizada por Edward Steichen em 1955 no Museum of Modern Art de Nova York (MoMA). Outra diferença é que o livro de artista é sempre uma obra de arte em forma de livro, uma obra criada para o livro, enquanto o fotolivro pode simplesmente reproduzir obras, como em uma monografia sobre um artista [2] ou um catálogo de exposição [3].
Enquanto no fotolivro o fotógrafo geralmente é o autor das imagens ali reproduzidas, no livro de artista as imagens podem ou não ter sido realizadas pelo artista, seja pela colaboração de outros artistas ou pela apropriação de imagens anônimas. Os Polaroid Portraits (1971-2001) de Richard Hamilton são retratos do artista em polaróides realizados por seus amigos, publicados em quatro volumes; Alec Finlay fez um livro com a colaboração de dezenas de fotógrafos anônimos que registraram as nuvens em movimento em Wind Blown Clouds (2005); artistas como Hans-Peter Feldmann e Christian Boltanski publicam seus livros desde a década de 1960 com fotografias de álbuns de família ou cartões postais comprados em mercados de pulgas, enquanto o alemão Joachim Schmid trabalha exclusivamente com fotografias encontradas, a princípio coisas jogadas na rua e hoje em dia, imagens encontradas na internet.
III. Relações texto e imagem
Nos estudos sobre intermidialidade, em suas análises sobre a relação texto e imagem, os livros de artista são pouco mencionados, apesar de serem considerados uma forma intermidiática por excelência, pois reúnem texto e imagem em um mesmo suporte (Drucker, 1994). Propomos uma reflexão a respeito das relações intermediais texto/imagem em uma seleção de obras que se encontram nesta zona de interseção do fotolivro e livro de artista a partir de uma classificação pragmática dos quatro tipos de transposição intersemiótica proposta por Leo Hoek: relação transmedial, discurso multimedial, discurso misto e discurso sincrético. Cada uma dessas relações é caracterizada por um tipo de imbricação texto/imagem, apresentadas em ordem crescente: transposição, justaposição, combinação e fusão (Hoek, 2006: 185).
De acordo com o pesquisador francês, “convém distinguir três tipos de relações físicas entre o texto e a imagem: a primazia da imagem e a primazia do texto (do ponto de vista da produção) e a apresentação simultânea do texto e da imagem (do ponto de vista da recepção)” (2006: 171). Utilizaremos esta distinção em nosso estudo sobre as transposições intersemióticas, pois acreditamos que também são úteis para entender uma diferença entre os livros que são produto de uma colaboração em que os autores possuem papéis bem definidos (escritor e ilustrador) e os livros em que as fronteiras entre as linguagens estão borradas.
Embora Leo Hoek tenha desenvolvido sua proposta de classificação pragmática considerando as diferentes categorias de obras artísticas (écfrase, histórias em quadrinhos, emblemas, cartazes, poemas visuais), uma análise dos tipos de transposição intersemiótica com obras de uma mesma categoria, como os livros de artista (incluindo livros ilustrados e fotolivros), pode ser feita por meio de aproximações. Utilizo uma abordagem estrutural, em que as palavras e as fotografias “não possuem sentido inerente, mas apenas em contexto, dentro do sistema estrutural de que fazem parte” (Rossman, 2008). Ao invés de desmembrar o livro em suas partes constituintes para melhor analisá-lo, as partes são estudadas de acordo com sua função ou sua relação com outros elementos do livro, ou seja, o livro é estudado como um tipo de montagem cujo significado é mais do que a soma de suas partes.
Em certos aspectos, os fotolivros de literatura estão mais próximos do livre d’artiste, um tipo de livro ilustrado surgido na França no final do século XIX, pois são produto da colaboração de um poeta ou escritor com um artista plástico ou fotógrafo. Este tipo de colaboração se baseia, na maioria dos casos, na justaposição de texto e imagem, enquanto no livro de artista podemos encontrar mais facilmente outros tipos de transposição intersemiótica, como a combinação e a fusão dos códigos verbais e visuais. Para a pesquisadora francesa Anne Moeglin-Delcroix, o propósito do livro de artista não é, como no livro ilustrado, organizar o encontro de dois desejos artísticos heterogêneos, do artista e do escritor, mas “a partir de uma intenção artística única, conseguir contar uma história que por si mesma determina os meios de que necessita” (1998: 278). Por este motivo, encontramos maior diversidade de procedimentos de composição nos livros de artista do que nos fotolivros de literatura e por isto fizemos nossa seleção de estudos de caso com os livros de artista que fazem uso da fotografia associada ao texto para construir seu significado.
IV. Transposição
O primeiro tipo de imbricação texto/imagem é a transposição de uma obra de um sistema semiótico para outro, do verbal ao visual ou vice-versa. Ela é caracterizada pela separabilidade dos códigos, pela autonomia do texto e da imagem e pela politextualidade. É uma relação estabelecida entre duas obras em sistemas de signos diferentes que compartilham algumas características comuns, que permitem o reconhecimento de uma em outra. O texto ou a imagem servem como ponto de partida, sem o objetivo de representar a obra fonte em outro meio. É uma relação transmedial, baseada na primazia do texto ou da imagem do ponto de vista de sua produção, cujas formas mais comuns são a crítica de arte, a écfrase e o roman-photo.
A transposição visa a produção de uma obra nova, de um sistema de signos para outro, mas não almeja preservar algum tipo de “equivalência ou homologia com a obra original” (Kaźmierczak, 2018: 8), por isso não deve ser confundida com a tradução intersemiótica. A transposição é parcial e relativa, ela pode se referir a apenas um aspecto da obra, ela não substitui o original e depende dele para o seu entendimento; a tradução intersemiótica representa o original em outro contexto semiótico mas não depende do conhecimento prévio da obra fonte.
Um ensaio fotográfico realizado a partir de uma obra literária, A João Guimarães Rosa, de Maureen Bisilliat, é um exemplo de transposição do texto para a imagem. São duas obras autônomas, o Grande Sertão: veredas de Guimarães Rosa e o fotolivro de Bisilliat publicado em 1969, cuja relação é estabelecida pela primazia do texto: a fotógrafa é uma leitora de Rosa e suas imagens ora apontam para passagens específicas do texto, ora sugerem ou evocam lugares e personagens do romance. Uma ilustração específica pode ser entendida como um tipo de tradução intersemiótica de um episódio da narrativa, um fragmento do texto, mas a ilustração como um todo não funciona separadamente do texto, nem pode substituir o texto e não está sujeita à equivalência. A imagem possui um caráter polissêmico, “mesmo quando relata um episódio particular da camada verbal, pode combinar e fundir vários elementos do texto fonte” (Kaźmierczak, 2018: 22). Pelo exposto, o conjunto de ilustrações de um livro não é de fato uma tradução intersemiótica do texto.
Seria um exemplo de transposição intermidiática a edição ilustrada da peça de Plínio Marcos, A Navalha na Carne? Publicada em 1968 como uma forma de preservar algo da montagem depois que a peça foi censurada pela ditadura militar então vigente no Brasil, o projeto gráfico do uruguaio Walter Hüne baseou-se na interpretação tipográfica que o designer francês Massin fez em 1964 da peça A cantora careca, de Eugène Ionesco. Em ambos casos, um fotógrafo registrou os ensaios ou apresentações da peça, as fotografias selecionadas foram manipuladas em laboratório para se tornarem imagens em alto contraste, com aparência de desenhos em preto e branco. Em algumas páginas, o retrato dos atores foi usado para substituir o nome dos personagens ao reproduzir um diálogo; o corpo da letra modifica-se ao longo do livro, as mudanças de tamanho correspondem ao tom de voz, do sussurro ao grito. A combinação de fotografia, tipografia e design gráfico criou uma nova obra a partir não apenas do texto mas da montagem teatral, o palco foi substituído pela página como local de interação entre os personagens. Mas o texto completo original foi preservado e faz-se necessário para o entendimento da obra, então não se trata de autonomia, de obra realmente nova, mas uma nova interpretação.
Vejamos o livro Crackers, de Ed Ruscha, publicado em 1969 a partir do texto “How to Derive the Maximum Enjoyment from Crackers”, do músico e comediante Mason Williams. Sua estética é influenciada pelas fotonovelas, apesar de não utilizar a divisão da página em quadros e não possuir textos no interior do livro, apenas fotografias em preto e branco, uma por página, com a página esquerda em branco. A narrativa foi fotografada com a participação de atores e uma atriz, contando em imagens o que está relatado no texto de Williams reproduzido na orelha da contracapa. O livro é uma espécie de manual, ensinando como “aproveitar ao máximo os biscoitos crocantes” e serviu como storyboard para o filme Premium, realizado por Ruscha em 1971. Do texto de Williams ao livro fotográfico de Ruscha temos um exemplo de transposição intersemiótica, a presença do texto original mostra a relação entre as obras; do livro Crackers ao filme Premium, uma tradução intersemiótica em que a obra fonte e a obra destino são do mesmo artista, mas não é preciso conhecer o livro nem o texto para assistir ao filme. A obra ganhou uma nova versão em 2011, Salad Dressing, uma colaboração entre Tom Sowden e o coletivo Performance Re-enactement Society: com a inclusão de curtos diálogos e a divisão da página em quatro partes, esta interpretação ficou mais próxima de uma fotonovela. O desfecho é diferente do texto de Mason Williams e do livro de Ruscha, mas não se trata de transposição nem tradução intersemiótica, mas um caso de transtextualidade (hipertextualidade, para ser mais exato). O hipertexto aqui é usado no sentido dado por Genette (2010), em que uma obra literária é derivada de uma obra anterior, por transformação ou por imitação, e cujo conhecimento da obra fonte por parte do leitor não é necessário, embora possa acrescentar novas camadas de interpretação.
Figura1. The Performance Re-enactment Society and Tom Sowden, Salad Dressing, 2011. Fonte: https://www.researchgate.net/publication/337302046_Exploring_Appropriation_as_a_Creative_Practice/
A transposição do cinema ou vídeo para o livro de artista é um fenômeno mais comum do que parece e tem como antecedente histórico as adaptações dos filmes da nouvelle vague francesa para o formato de fotonovelas, um gênero que foi muito lido na década de 1940 até meados dos anos 1970. A estrutura de texto e imagem das histórias em quadrinhos é muito presente nos livros e filmes de Lawrence Weiner, como Blue Moon Over (2001) e Wild Blue Yonder (2002). O artista utiliza o mesmo título para as duas obras, o livro e o filme, pois não parece ser muito importante para ele enfatizar o que veio primeiro: ora os livros podem ser roteiros para os filmes, como em Green as Well as Blue as Well as Red (livro de 1972, filme de 1976), ora o livro é uma adaptação, utilizando fotogramas do próprio filme, como em Passage to the North (1981) ou uma coleção de fotografias realizadas durante a produção do filme, como em Plowmans Lunch: Comix, publicado em 1989.
V. Justaposição
As relações intermidiáticas baseadas na justaposição palavra/imagem são do tipo misto, em que observamos a separabilidade e a autossuficiência dos elementos verbais e visuais, ou seja, eles possuem limites bem definidos, existem de forma independente, embora possam ocupar o mesmo espaço gráfico – na mesma página ou lado a lado na unidade formada pela página dupla. Este tipo de relação é chamado de discurso multimedial, pois é baseado na co-existência de duas mídias autônomas, a mídia verbal e a mídia visual, que podem estar em um mesmo suporte ou em suportes diferentes (uma placa com o título da pintura fixada na moldura, por exemplo). Quando palavra e imagem são apresentadas lado a lado, elas não se misturam fisicamente mas se influenciam reciprocamente, o que pode ser observado de modo exemplar nos livros ilustrados.
Existem livros em que o texto e a imagem são igualmente importantes, são contribuições autônomas em que as camadas verbais e visuais se complementam, em uma relação que pode ser baseada em convergência ou divergência. Possivelmente, “a principal inovação dos livros de artista é sua justaposição de palavras e imagens na mesma página” (Rice, 1985: 59), o que representa uma transgressão de um padrão predominante nos livros ilustrados, em que a separação física da ilustração e do texto era a norma. De acordo com Shelley Rice, a forma de apresentação lado a lado estava a serviço de uma narrativa linear mas foi “imitada, parodiada, alterada e completamente renovada pelos livros de artista. E, no processo, uma nova forma de literatura visual foi criada” (1985: 59).
A justaposição de fotografia e texto pode ocorrer em mais de uma camada com o objetivo de produzir uma experiência única de percepção do tempo, impossível de ser percebido de outra forma ou com um dos elementos isoladamente. A narrativa do livro Ott ’s Sneeze acontece em quatro níveis simultaneamente, com a justaposição de duas sequências fotográficas, um texto e um diagrama que explicam ou descrevem o que é mostrado nas fotografias. Resultado da colaboração do artista Neal White com o romancista Lawrence Norfolk, o livro tem como ponto de partida um experimento científico fracassado do século 19, a tentativa de registro de um espirro realizado no laboratório de Thomas Edison em 1894. O inventor William Dickson testava a primeira câmera de cinema do mundo, o cinematógrafo, e tentou registrar um espirro de seu assistente de laboratório, Frederic Ott. O paradoxo dos quarenta e cinco quadros de Record of a Sneeze é que eles não mostram nenhum espirro – as gotas e gotículas da explosão de Ott eram muitas, muito rápidas ou muito pequenas. Uma fina névoa de muco pode ser lançada do nariz de uma pessoa a quase 160 quilômetros por hora, sendo necessário para o seu registro um equipamento capaz de fotografar com a velocidade de 923 quadros por segundo. Tendo escapado do cinematógrafo, o espirro passou mais de um século no limbo de representação; anunciado perpetuamente, mas nunca visto. A dupla refez o experimento empregando os mais recentes avanços em tecnologias de laser, vídeo e computador.
A sequência de fotografias que resulta do espirro em progresso no espaço é mostrada no centro da página esquerda, com o texto ocupando a mesma posição mas na página oposta. Abaixo das fotografias, um diagrama mostra uma linha do tempo em milissegundos e o volume de gotículas visíveis em cada imagem e os quarenta e cinco quadros originais de Dickinson aparecem no canto superior da página direita, como em um flipbook. No final do livro, um texto apresenta detalhes sobre o experimento, a metodologia e os equipamentos utilizados.
Figura 2. Neal White e Lawrence Norfolk, Ott ’s Sneeze, Book Works, 2002.
Fonte: https://bookworks.org.uk/publishing/shop/otts-sneeze/
Embora pouco comuns, também existem casos em que o livro é produto de colaboração mas não é possível identificar quem é o autor dos textos e das imagens, pois não há um papel definido para o escritor e o artista, os dois participam das duas atividades igualmente. A dupla Gilbert & George, conhecidos por suas performances de “esculturas vivas”, publicaram dois romances ilustrados com fotografias que são performances encenadas para a câmera, Dark Shadow e Side by Side. A estrutra dos livros é a mesma: textos de um lado e fotografia de outro, o texto comentando a imagem. O texto curto é apresentado em um corpo de texto maior do que o costume, mais parecido com livros para crianças.
Publicado originalmente em 1971 e reeditado em 2013, Side by Side tem um breve texto de apresentação, um aviso ao leitor de que os capítulos juntos “representam um romance escultórico contemporâneo” (a contemporary sculpture novel) e que o livro é baseado em “plano, intenções e experiência”. Composto por três capítulos, cada um possui um texto de introdução de uma página, um comentário geral sobre o que o leitor encontrará nas páginas seguintes.
O primeiro capítulo, “With Us in the Nature”, possui cenas dos artistas no interior da Inglaterra, algumas fotografias mostram apenas um jardim ou um detalhe de um arbusto silvestre florido, o texto ao lado descreve ou comenta a imagem, misturando a simples observação de um detalhe com os pensamentos e os sentimentos associados ao momento registrado na fotografia; a composição do texto, sempre com 12 linhas, é feita de modo a ocupar exatamente a mesma mancha gráfica das fotografias, mostrando a equivalência entre as duas linguagens – a página do lado direito é ocupada pelas imagens. No primeiro e no segundo capítulos, cada imagem possui um texto correspondente, enquanto o terceiro capítulo, “The Reality in Our Living”, é diferente dos outros dois, pois o mesmo texto de 16 linhas se repete em todas as páginas. Algumas palavras do texto são usadas como título das imagens, depois de um tempo o leitor percebe que na verdade o texto é uma narrativa formada pela justaposição dos títulos, a sequência das imagens corresponde à sequência de acontecimentos do relato de um dia na vida dos artistas em um passeio pela cidade. Na introdução do capítulo, os artistas informam que “estas palavras estão sempre conosco”.
No livro inteiro, o texto sempre começa e termina na mesma página, não existe continuação na página seguinte, eles formam uma coleção de momentos mais do que uma narrativa linear. As fotografias possuem um título curto colocado abaixo delas, muitas vezes formado por uma única palavra, como uma legenda. O conjunto, texto, fotografia e título funciona como um emblema, uma estrutura alegórica cujo significado não reside nos elementos isolados mas na associação dos elementos em uma entidade nova. O conjunto formado pelos três capítulos é o que os autores chamam de uma escultura, ou seja, uma forma no espaço, aqui transformada em uma experiência de percepção espacial que abrange o mundo exterior e o interior, tema do segundo capítulo, “A Glimpse into the Abstract World”.
A transposição intersemiótica da imagem à escrita pode ocorrer no interior da própria obra, na relação entre a imagem e o seu título inscrito na moldura ou apresentado como legenda. A justaposição texto e imagem pode ser observada até mesmo em livros em que não existe nenhum texto além do título impresso na capa. No livro de John Baldessari, Brutus Killed Caesar (1976), o artista utiliza a justaposição de três imagens por página: nas extremidades ele colocou o retrato de dois homens, um de frente para o outro, que se repete no livro inteiro; no centro da página foram colocados fotografias de objetos diversos, possivelmente utilizados para o crime mencionado no título. As imagens são “completamente dependentes do título para fazer sentido; não fosse pelo título, não ficaria evidente que a parafernália de objetos mostrados no livro são também instrumentos de morte” (Phillpot, 1985: 119).
Como uma espécie de reação ao logocentrismo, alguns livros de artista parecem se apropriar de certos gêneros literários e apresentam uma versão não-verbal deles, como fez Sol LeWitt em seu Autobiography:o títuloé praticamente a única palavra do livro de 1980. A vida do artista é contada a partir de grupos de nove fotografias por página mostrando detalhes de sua residência, seus objetos pessoais, os elementos da decoração: os membros da família aparecem nos porta-retratos, em um jogo metalinguístico, a foto da foto. Cada grupo possui unidade temática ou formal, representam um ambiente da casa ou uma classe de objetos, os utensílios de cozinha ou as prateleiras de livros em sua biblioteca. O relato de uma vida foi substituído pela apresentação de um modo de viver, das coisas que fazem parte do cotidiano. A estrutura linear do texto cedeu lugar a uma estrutura espacial, não-narrativa, pois a apresentação das fotografias em grade não possui hierarquia, começo ou fim.
O texto apresentado como legenda também pode alterar a leitura das imagens, o que pode ser usado com alguma ironia para ampliar as possibilidades de leitura, como fez Adrian Piper em Colored People, de 1991. As fotografias em preto e branco de um grupo de pessoas receberam aplicação de áreas de cor, como se uma criança tivesse rabiscado com giz de cera sobre os retratos. A ordem de apresentação das pessoas muda em cada seção, ou capítulo do livro, em que as imagens são agrupadas por cores, com uma página de abertura com o nome de cada seção: "Tickled Pink”, “Scarlet with Embarrassment”, “Purple with Anger”, “Blue”, “Green with Envy”, “Jaundiced Yellow”, “White with Fear”, “Black Depression”. O livro de Piper trabalha com o duplo sentido das palavras, entre o literal e o metafórico. As imagens também são ambíguas, pois a expressão facial nem sempre corresponde ao tipo de emoção que se deseja transmitir.
VI. Combinação
Existem duas situações que descrevem uma estreita relação física entre o texto e a imagem: “o texto e a imagem podem se combinar para formar um discurso verbal e visual composto, com cada um mantendo sua própria identidade (discurso misto), ou então eles podem se fundir de modo inextricável (discurso sincrético)" (Hoek, 2006: 179). A combinação é uma forma de apresentação simultânea do texto e da imagem em um mesmo suporte ou no mesmo espaço, sendo mais comumente encontrada nos cartazes e nas histórias em quadrinhos. Embora seja possível a separação dos elementos verbais e não-verbais, eles não possuem autossuficiência, ou seja, são mutuamente dependentes.
O livro 246 Little Clouds consiste em anotações diversas de Dick Higgins sobre o processo criativo, sobre a linguagem verbal e comentários a respeito dos desenhos, apresentados em textos curtos manuscritos. Os textos parecem aforismos e são numerados, sua distribuição ao longo do livro é diversificada, em média são dois por página, mas algumas páginas possuem apenas um e outras possuem quatro. São acompanhados por desenhos ou diagramas feitos em pedaços de papel de tamanho variável, com contornos irregulares, a maioria retangular, colados com fita adesiva sobre a página manuscrita. A montagem das páginas do livro coloca em evidência o seu processo de construção, pois em 1968, época em que saiu a primeira edição, os livros e revistas eram diagramados usando a técnica de paste-up, as marcas da fita adesiva eram apagadas no laboratório fotográfico, na produção do fotolito. A combinação de texto manuscrito e pedaços de papel colado trazem um registro mais espontâneo, como um caderno de notas. Em alguns momentos, a página remete a uma história em quadrinhos, seja pela relação entre o texto e os desenhos, seja pela presença de molduras formadas pelo contorno do papel recortado. O livro foi meticulosamente fotografado de acordo com instruções do artista, com a fonte de iluminação posicionada em ângulos diferentes a cada página, de modo que os pedaços de papel presos com fita adesiva produzissem uma sombra projetada que muda de posição ao longo do livro, como se o leitor observasse os deslocamentos da sombra acompanhando a luz do sol sobre um objeto ao longo de um dia. São duas formas de narrativa que se sobrepõem, pois os fragmentos são peças autônomas mas ao mesmo tempo formam uma sequência visual, como as sombras das nuvens.
A combinação pode acontecer sob a forma de um texto inscrito, inserido ou sobreposto na imagem, de modo que passa a fazer parte da imagem. O paulistano Fagus utilizou técnicas de montagem semelhantes ao que se conhece hoje como escrita não-criativa, em que uma obra literária pode ser criada sem que o seu autor tenha escrito nenhuma linha de texto, apenas copiando frases existentes e reordenando-as. O seu Poema de Amor é um livro produzido em 2012 de forma artesanal com cenas do cinema estrangeiro selecionadas pelo artista para formar um novo texto coerente. Em cada página, o texto mostrado na parte debaixo dos fotogramas é a legenda dos filmes, o que indica que este foi o critério de escolha das cenas, que por este motivo possuem graus variáveis de interesse, mostrando pessoas ou paisagens, cenas de interior ou exterior.
Em alguns casos, a separação entre figura e fundo torna-se mais difícil, pois a página dupla é ocupada por uma única fotografia sangrada e o texto está inserido nela. Esta distinção entre o que é figura ou fundo é fundamental nos livros de texto, a legibilidade depende do contraste entre as letras e a página; nos poemas concretos, o branco ou o espaço entre as letras é um elemento constituinte do poema, que é apresentado como um diagrama de relações entre os vocábulos, ou seja, a linearidade do texto foi substituída pela simultaneidade da imagem, como um ideograma. Em um livro de fotografias, quando não existe uma moldura branca ao redor das imagens, o texto deixa de ser título ou legenda, não se encontra mais no exterior mas dentro da própria imagem.
No livro de Fabio Morais publicado em 2014, o texto aparece sobreposto nas fotografias em preto e branco, imagens de uma multidão, provavelmente copiadas de situações diferentes, incluindo comícios, manifestações, protestos, concertos de música a céu aberto, eventos religiosos ou jogos de futebol. O leitor acompanha um diálogo em que os dois protagonistas tentam se encontrar no meio da multidão, o diálogo impresso sobre a fotografia remete às fotonovelas, mas não existe nenhuma indicação que permita identificar quem é que está falando – desse modo ele coloca o leitor na mesma situação dos personagens, um pouco deslocado, perdido, procurando alguém que não sabemos onde está. A forma de apresentação não é linear, mas espacial – cada pessoa está de um lado do livro, lemos apenas as perguntas ou respostas de um deles, ao chegar na metade do livro encontramos não a outra pessoa, mas suas perguntas e respostas, em suas tentativas de aproximação. A dificuldade ou a impossibilidade do encontro dá um novo sentido à resposta que dá título ao livro: não. O autor ainda propõe outra leitura, seguindo a numeração das páginas, que se alternam de par em par, de um lado do livro em ordem crescente, de outro em ordem decrescente.
Figura 3. Fabio Morais, Não, Ikrek, 2014. Fonte: http://fabio-morais.blogspot.com/2014/04/nao-2014.html
A página pode se apresentar como um cartaz, com o texto que pode ser lido à distância. O livro Ajawaan de Hamish Fulton é o registro de uma ação, uma caminhada de oito dias em Central Saskatchewan no Canadá em agosto de 1985. A vista panorâmica do lago Ajawaan foi impressa em uma folha que, dobrada, forma um livro do tipo sanfona (accordion fold book). Sobre a fotografia em preto e branco o artista inseriu grupos de palavras escritas com letras de forma, tipos sem serifa, formando colunas de cores alternadas, brancas e vermelhas, em contraste com o fundo. As colunas são feitas de sete palavras com quatro letras cada uma, substantivos relacionados ao ambiente natural (lago, pedra, árvore, madeira), descrevem as condições climáticas (vento, névoa, chuva), os animais nativos (pato, mergulhão, corvo, urso, peixe) e formam uma espécie de poema concreto, baseado em analogias e na justaposição de substantivos. Assim como acontece com os ideogramas, é a lógica do intervalo que prevalece, o sentido é construído pelo leitor, que preenche os espaços entre as palavras e articula a leitura de acordo com as aproximações entre os vocábulos, que têm como ponto comum a paisagem de fundo. O artista busca recriar no espírito do leitor a experiência, por isso o texto não é meramente descritivo mas busca evocar memórias, sensações e percepções.
VII. Fusão
O texto apresentado como imagem é mais comumente encontrado nos caligramas, na poesia visual e em alguns livros de artista que fazem uso da materialidade do texto, seja por meio da tipografia ou da caligrafia. Este tipo de imbricação texto e imagem é chamado de discurso sincrético, um tipo de relação intermidiática em que os elementos são integrados de tal maneira que não é possível separá-los, a forma de apresentação do texto é parte do seu significado.
No caso dos fotolivros e livros de artista, além da fusão texto/imagem existe outro aspecto que é sua integração com a estrutura do livro. A relação fundamental entre o significante e o significado, chamada de isomorfia, é usada por Julio Plaza para falar da diferença entre um poema-livro e um livro-poema, em que o primeiro tem o livro como suporte mas não integra em sua composição os elementos que são característicos do livro – a página simples, o verso e o reto da folha, a página dupla, a sequência de páginas, a encadernação. O poema-livro pode ser apresentado de outra forma, em cartaz ou em filme, sem perder informação significativa, enquanto o livro-poema (assim como o livro-obra) incorpora a estrutura do livro de modo que se torna “intraduzível para outro sistema ou meio” (Plaza, 1982: s.p.).
A fusão palavra/imagem nos exemplos selecionados abaixo foi realizada por intermédio da fotografia. Mais especificamente, é um tipo de transformação da palavra em imagem que não poderia existir no livro sem a técnica da fotografia. O texto deixa de ser um conjunto linear de letras que podem ser recombinadas em outras palavras para se tornar figura em diálogo com a página ou com outras figuras. Uma frase escrita é unidimensional, é uma linha, enquanto uma frase fotografada é bidimensional, forma um plano. Desse modo, o texto pode ser apresentado em camadas ou planos diferentes: na superfície da página (um plano único), sobre a página (um plano de fundo e o primeiro plano, como um objeto colocado sobre o livro aberto) ou acima da página (um terceiro plano, acima dos outros, como se um objeto real flutuasse sobre o livro e projetasse sua sombra sobre os outros dois planos).
O pintor norte-americano Jim Dine escreveu um conjunto de poemas que foram reunidos em 2004 em um livro de artista com o curioso título This Goofy Life of Constant Mourning. Os poemas são manuscritos em pedaços de papel ou diretamente no chão, em paredes ou sobre objetos que se encontram no ateliê do artista, foram feitos com pastel, giz, carvão ou pincel. O artista busca preservar a materialidade do texto e toda a sua carga semântica associada, por isso “todas as palavras encontradas no corpo do livro são fotografadas” (Silveira, 2011: 249). As páginas não são numeradas, todas as fotografias são sangradas, algumas vezes ocupam a página dupla, outras vezes são mostradas uma fotografia ao lado da outra. A ampliação de um detalhe mostrado em páginas anteriores, colocando em destaque um verso ou uma palavra, exibe o trabalho de edição e montagem do livro.
Figura 4. Jim Dine, This Goofy Life of Constant Mourning, Steidl, 2004.
Fonte: https://steidl.de/Books/This-Goofy-Life-of-Constant-Mourning-0411171855.html
A palavra é apresentada “na condição de objet trouvé” (2011: 249), mantendo a espontaneidade de uma anotação mais do que de uma encenação, aqui entendida no sentido de criação de algo para ser fotografado no estúdio. Os poemas são curtos e permanecem legíveis mesmo com esta forma de apresentação incomum. Os textos manuscritos, neste caso, possuem um caráter gestual que remete à tradição da caligrafia como forma de expressão artística, tal como é praticada no oriente médio e no extremo oriente. A arte da caligrafia na China preserva a origem icônica da escrita, o poema e a pintura compartilham o mesmo suporte, são feitos com o mesmo instrumento, são tão próximos que se confundem em certos gêneros de pintura-poema. O dispositivo fotográfico tem a capacidade de colocar no mesmo plano pictórico elementos que estavam em planos diferentes, unificando a cena, transformando o espaço tridimensional em superfície bidimensional. A operação realizada nos torna novamente conscientes dos aspectos plásticos do texto, sua forma, cor, textura, seu tamanho e sua materialidade, em suma, seu caráter icônico. Aqui o texto fotografado é como uma volta às origens icônicas da escrita.
Outra maneira de apresentar o texto mediado pela fotografia encontramos em um livro do casal escocês Helen Douglas e Telfer Stokes, que publicaram juntos muitos livros que se tornaram bem conhecidos no universo dos livros de artista. O mais famoso deles talvez seja Real Fiction: An Inquiry into the Bookeresque, de 1987, o primeiro que eles fizeram sem um roteiro prévio. A narrativa foi criada ao mesmo tempo em que as imagens foram produzidas, uma fotografia despertava ideias e associações que geravam a próxima imagem.
Como indicado em seu subtítulo, a obra é uma investigação do livro, suas páginas e sua estrutura. Maquetes foram usadas para criar as imagens, começando com livros em branco cujas páginas lançavam sombras e isso desencadeou a criação de espaços dentro do livro. Real Fiction é um livro autorreferente que mostra fotografias de um livro em branco, aberto, de modo que a medianiz do livro fotografado coincide com a medianiz do próprio livro. A fisicalidade do livro (sua presença como objeto) convive com “a oportunidade para criar um mundo de ilusões dentro dele” (Stokes apud Silveira, 2001: 188). O texto, uma frase curta de cada vez, aparece em páginas duplas alternadas com páginas duplas de imagens. As letras parecem flutuar um pouco acima da superfície do papel, efeito criado pela sombra projetada das palavras, um índice de sua materialidade [4]. O livro foi construído “como objeto e como processo, além de integrar a palavra à fotografia, dando a ela (a palavra) o status de objeto” (Silveira, 2001: 188).
Figura 5. Helen Douglas e Telfer Stokes, Real Fiction (An inquiry into the Bookeresque), Weproductions / Visual Studies Workshop, 1987. Fonte: https://bookstore.vsw.org/product/real-fiction
Baseada na clássica peça do teatro de marionetes Punch e Judy, a artista Janet Zweig criou Heinz and Judy: a play (1984). O livro é composto por pequenas narrativas paralelas e interconectadas, o texto e a imagem aparecem em camadas sobrepostas: na página lemos o texto original da peça; sobre a página, fragmentos de papel recortados de livros diversos com comentários sobre o valor moral das histórias; palavras e frases manuscritas com tinta, giz de cera ou lápis de cor parecem à primeira vista intervenções feitas por uma criança sobre o livro, mas a sombra de um dedo escrevendo uma palavra com tinta coloca esta camada entre o livro e o leitor; por último, como em um teatro de sombras, vemos a silhueta de um homem e uma mulher projetadas sobre a página, como se o livro incluísse na página os seus leitores. As silhuetas são fotogramas, um tipo de fotografia realizada sem câmera, com os objetos colocados diretamente sobre o papel fotográfico. Uma parte do texto foi composto como em um livro comum enquanto os pedaços de papel foram fotografados e assim como as “nuvens” de Higgins, eles possuem sombra. O caráter indicial da fotografia é o que coloca o leitor com a sensação de que está diante de uma encenação teatral, com as sombras das mãos dos atores e de outros objetos de cena projetadas sobre os pedaços de papel, “remetendo ao teatro de sombras e às convenções teatrais” (Drucker, 1999: 13).
Figura 6. Janet Zweig, Heinz and Judy: a play, 1984. Fonte: https://collections.library.uarts.edu/digital/collection/bookarts/id/1568
VIII. Considerações finais
A leitura dos livros a partir de uma classificação pragmática teve como objetivo entender novas possibilidades de interação texto e imagem, além da simples justaposição que é sua forma mais comum de apresentação. É claro que os livros são mais ricos e complexos do que este recorte que apresentamos, podemos encontrar na mesma obra dois ou três tipos de imbricação texto/imagem, mas privilegiamos um aspecto predominante de cada livro em nossa análise para mostrar da melhor maneira as características estruturais.
Outra leitura possível dos tipos de transposição intermidiática seria baseada na evolução das técnicas de reprodução da imagem em livros: a impressão tipográfica privilegia a justaposição, pois mesmo que a matriz da gravura em madeira ou o clichê de zinco tenham a mesma altura dos caracteres tipográficos, permitindo a impressão simultânea, são duas matrizes colocadas lado a lado, sem a possibilidade real de mistura; a combinação de texto e imagem é resultado do processo de fotocomposição, sem o qual não seria possível uma interpretação tipográfica como a de Robert Massin, que deu ao texto o mesmo tratamento dado às imagens, com a possibilidade de ampliação, redução, rotação e sobreposição do texto; finalmente, os recursos de computação gráfica deram maior liberdade aos artistas, pois reúnem o laboratório fotográfico e a fotocomposição, colocam ao seu alcance diversos conhecimentos técnicos especializados, permitindo a fusão verbal/visual.
REFERÊNCIAS
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–––––––––– (2004). The Century of Artists' Books. New York: Granary Books.
GENETTE, Gérard (2010). Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad. Cibele Braga, Erika Viviane Costa Vieira, Luciene Guimarães, Maria Antônia Ramos Coutinho, Mariana Mendes Arruda, Miriam Vieira. Belo Horizonte: Edições Viva Voz.
HOEK, Leo (2006). “A transposição intersemiótica: por uma classificação pragmática”. Poéticas do Visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Ed. Márcia Arbex. Belo Horizonte: Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG. 167-189.
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–––––––––– (2011). As existências da narrativa no livro de artista. Tese de doutorado. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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THURMANN-JAJES, Anne (2002). ars photographica: Fotografie und Künstlerbücher. Weserburg, Bremen: Neues Museum.
NOTAS
[1] Tanto o termo artist's book quanto photobook foram criados décadas depois dos livros a que se referem. A maioria dos acervos em museus e bibliotecas adotam a famosa classificação de Clive Phillpot, bibliotecário e pesquisador, que considera três grandes categorias de livros de artista: os livros de artista em sentido estrito (livro-obra ou bookwork), os livros-objeto (livros únicos e esculturas em forma de livro) e os livros como registro de performances e ações (apenas livros). Desse modo, o livro de artista é uma categoria mais abrangente que inclui objetos conceitualmente e materialmente diversos. Badger e Parr dedicaram um capítulo de sua trilogia da história dos fotolivros aos “fotolivros de artista”, mas isso não quer dizer que os livros de artista são uma categoria dentro do fotolivro. Esse entendimento do livro de artista como uma categoria de fotolivro se baseia em uma afirmação da pesquisadora alemã Anne Thurmann-Jajes, de que “half of all the artist’s books published are photobooks” (2006: 132). Trata-se de um equívoco, pois o texto original do catálogo diz que “‘In very general terms, it is possible to say that half of all artists’ books produced to date have been based on photographs” (2002: 19). Existem livros de artista (“quase a metade”) que não fazem uso de fotografia e não podem ser chamados de fotolivro, portanto eles não constituem uma categoria dentro do fotolivro; por outro lado, além dos fotolivros de arte e de literatura que podem ser considerados livros de artista, existem os fotolivros de propaganda, seja governamental ou de grandes empresas, também conhecidos como “company photobook” (Parr e Badger, 2006) que não são livros de artista, apesar de sua qualidade gráfica como livro. Por este motivo considero mais adequado pensar em uma zona de interseção entre o fotolivro e o livro de artista.
[2] Fotografias, o primeiro livro de Sebastião Salgado, foi publicado pela Fundação Nacional de Arte (Funarte) em 1982 em um contexto de divulgação da arte brasileira. O livro é mencionado na antologia de fotolivros latino-americanos organizada por Fernández (2011).
[3] The Photographer’s Eye, catálogo de autoria de John Szarkowski, que sucedeu Steichen como curador de fotografia no Museu de Arte Moderna de Nova York em 1962 (Parr e Badger, 2006: 219).
[4] Embora a aparência do texto seja natural para quem está familiarizado com a diagramação de um livro realizada no computador e por isso dificilmente a sombra projetada seja associada à fotografia, é bom lembrar que na época em que o livro foi feito não existiam programas de diagramação no computador e os textos e as imagens eram fotografados para produzir os fotolitos que seriam utilizados para gravar as chapas de ofsete usadas para imprimir os livros. Este conhecimento técnico especializado não era algo comum, que qualquer artista dominava, mas era uma característica de um grupo de artistas-editores na década de 1970.
© 2021 Amir Cador.
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