Os “álbuns despenteados” em Esse cabelo de Djaimilia Pereira de Almeida
Alice Girotto
UNIVERSITÀ CA' FOSCARI VENEZIA
ORCID: 0000-0002-3349-3791
A obra de Djaimilia Pereira de Almeida – a qual, no espaço de apenas seis anos, já publicou uma obra de cariz autobiográfico, um “retrato ensaístico” (Almeida, 2021: 176), quatro romances, uma coletânea de crónicas e ensaios e um fotolivro (em colaboração, este, com o marido Humberto Brito) – tem tido um apreciável impacto na literatura portuguesa contemporânea, de que é testemunha, entre outras coisas, o número de estudos académicos que lhe vêm sendo tributados. Os enquadramentos teóricos e as propostas hermenêuticas mobilizados em particular para a sua obra de estreia Esse cabelo [1] dizem respeito, nomeadamente, à condição diaspórica, à qual se ligam os temas da procura da identidade, da definição de si e do duplo analisados através de uma abordagem de tipo psicanalítico (Torrão, 2017); à descoberta e à construção duma identidade pós-colonial (Sousa, 2017), uma vertente que foi declinada também em relação ao preconceito racial na sociedade portuguesa contemporânea (Lima, 2020) e como um olhar decolonial e “testemunho [de] identidades hifenizadas” (Ferreira, 2020: 230); a questões de género e de definição dum cânone literário (Britto, 2018) para chegar até à hipótese da racialização da literatura portuguesa (Gonçalves, 2019). Neste contexto, o que não resulta ter sido ainda tratada é a interdependência não só entre a peculiar forma literária escolhida pela autora e a procura identitária da narradora e protagonista, mas justamente a relação daquela com um procedimento de representação que chama em causa a fotografia.
Que o género da autobiografia – ou, melhor dito, a escrita autobiográfica – seja a forma literária em que mais frequentemente se emoldura o tema da procura, definição e/ou construção da identidade é algo implicado pela própria operação autobiográfica, cuja característica fundacional é a de oferecer uma interpretação dos acontecimentos da sua própria vida por parte de quem escreve, um esforço de recuperação e de reorganização através da memória com base na ideia de si que o autor tem no momento em que compõe a obra [2]. Por seu lado, sendo esse um dos temas centrais no contexto das literaturas pós-coloniais, diaspóricas e mais em geral de todas as expressões culturais “da diferença”, não surpreende que muitos autores e autoras de alguma forma representantes destes âmbitos tenham experimentado e continuem experimentando tal género. É dentro deste quadro global que podem ser compreendidas e interpretadas as obras autobiográficas de escritoras afro-europeias: é o caso de estreias literárias como Lara (1997 e 2009) da britânica Bernardine Evaristo, mas também de publicações por parte de escritoras que já tinham ensaiado a narrativa curta ou o romance, como a italiana Igiaba Scego com o seu La mia casa è dove sono (2010). Num ensaio de 2011, que faz parte dos resultados do primeiro grupo de investigação em Europa a debruçar-se sobre a diáspora africana no nosso continente, a estudiosa italiana Annalisa Mirizio vê nas potencialidades da escrita autobiográfica, sobretudo em termos de acesso ao campo literário por parte de sujeitos subalternos, a explicação mais convencedora pelo número de textos pertencentes a este género publicados por autores afro-europeus. A estudiosa analisa também como, longe de serem simples evocações de vivências pessoais, estas autobiografias servem de contraponto à história oficial e proporcionam um impulso para as mudanças sociais. Nos dois casos concretos mencionados, exemplificativos de autoras de renome nos respetivos contextos nacionais ao par do que se tem tornado Djaimilia Pereira de Almeida em Portugal, o eixo da narração encontra-se no plano espacial e (mais marcadamente por Evaristo) temporal. De facto, Lara é um prosimetrum focado no processo de formação identitária da protagonista que se desenvolve através de épocas distintas e como que desenhando uma triangulação espacial entre os continentes europeu (Inglaterra), africano (Nigéria) e americano (Brasil), nas suas tentativas e buscas em prol da reconstrução da genealogia familiar. Em La mia casa è dove sono a procura da identidade da narradora realiza-se por meio da sua apropriação (“completamento”, nas palavras da mãe dela) do mapa da cidade de Mogadíscio, na Somália país de origem da família, recomposto graças à sobreposição com a geografia pessoal que ela tem de Roma, a sua cidade natal, capital europeia vista e vivida a partir da perspetiva de uma afrodescendente. Esse cabelo, afim a estas duas obras na perspetiva do género literário [3] e da recém-criada categoria crítica de afrodescendência, sobressai contudo pela estruturação ao redor da imagem fotográfica da “operação autobiográfica” de que é o resultado, elemento que, como já antecipado, complica a imbricação entre autobiografia e procura identitária característica de muitos textos que recaem nessa categoria [4].
A simples observação dos objetos-livros publicados pela escritora permite, aliás, inteirar-se do que a própria declarou, numa recente entrevista, ser um dos seus interesses principais: “daí ocorrerem com naturalidade fotografias nos meus livros. Pouca coisa me incita tanto a escrever como uma fotografia” (Almeida, 2021: 177). O resultado mais próximo no tempo deste interesse é o fotolivro Regras de isolamento [5], registo de como o casal Almeida-Brito enfrentou o confinamento imposto pelo estado de emergência declarado na primavera de 2020 em consequência do surto da pandemia de Covid-19. Nele, os retratos do interior da casa, das vistas desde as janelas ou dos arredores tirados durante as caminhadas (auto)concedidas combinam-se com textos de ficção, ensaio e crónica, mas também com reflexões sobre o próprio estatuto das imagens [6] e da prática artística da fotografia, com referência a textos de Robert Adams, Robert Frank, Larry Sultan. Nesta mesma senda inserem-se três crónicas de Pintado com o pé, nomeadamente “Uma fotografia com Mariam”, “Morrer pela primeira vez” e “Parto e resgate”, nas quais é sobretudo o lado mais perturbante e predatório (Sontag, 1977) do ato de tirar uma fotografia a ser dissecado [7]. Como já antecipado, porém, é em Esse cabelo que as fotos não só aparecem no texto como imagens que inspiram, incitam e possibilitam a escrita do trecho a que são ligadas, mas até estruturam no plano composicional toda a obra. Dito com as palavras de Remo Ceserani, importante teórico da literatura e comparatista italiano que dedicou uma das suas últimas monografias às relações entre fotografia e literatura, a obra de estreia de Djaimilia Pereira de Almeida torna patente a possibilidade que o procedimento fotográfico – com as suas linguagens e conotações metafóricas – se tematize no texto e que, ao mesmo tempo, os vários temas – sugeridos por tal linguagem – se tornem procedimento, oferecendo exemplos de representação e de possíveis desenvolvimentos narrativos [8]. De facto, por marginal que possa parecer, dum ponto de vista material e quantitativo, a presença da imagem fotográfica nele, Esse cabelo não deixa de poder ser entendido como um “fototexto”, no sentido dado à definição por Ari J. Blatt:
[W]e must be careful not to neglect the text as phototext paradigm in which literary narratives explore the nature of photographic representation in words, whether they model their own way of seeing (and writing) on photography, creating a unique kind of optical poetics in the process […], or whether they explore the social and epistemological implications of advances in photographic or protophotographic technology […]. Other textual phototexts describe and contextualize both real and fictional stills that make their way into narrative, proving just how malleable the figure of ekphrasis really is and engaging the medium’s power as a tool of voluntary memory […], its link to the personal past […] or its relationship to ritual and the spiritual […]. (2009: 46)
Duas entrevistas à autora no período posterior à publicação do livro revelam a plausibilidade da hipótese da sua estruturação à volta da imagem fotográfica: numa fala da disposição dum álbum de fotografias de família, ou dum álbum de infância, como sendo a ideia germinal da obra (Lança, 2015); na outra, respondendo acerca das leituras importantes para o processo de escrita, menciona, entre outras, as memórias de Walter Benjamin (Bressane, 2016). A ligação entre as duas afirmações, e o elemento que portanto conecta o uso das fotografias com a tradição ilustre da escrita autobiográfica na literatura europeia do século passado, estará nos próprios laços entre memória e fotografia [9], na seletividade com que tanto o processo psíquico como o tecnológico funcionam – embora Almeida interprete a certo ponto esta seletividade como sendo subida, e não agida, pelo indivíduo: “A memória é um demagogo: não nos deixa escolher o que vemos; alimenta-se da tentação de fazermos menos do que não fomos” (Almeida, 2020: 78). De facto, as referidas memórias do intelectual alemão – de que existem várias versões – [10] são o resultado dum percurso de construção da memória através do ato de recuperação do rastro deixado não por fotografias, mas sim por postais, revistas, livros ilustrados para crianças, coleções de borboletas e outros objetos-relíquia (ou talvez “sobras”) que deixaram a sua impressão na psique e vêm sendo recuperados e postos um ao lado do outro. Para além do mero dado (auto)biográfico, porém, será também o interesse coletivo e social das lembranças individuais de tal forma reconstruídas e organizadas, metaforicamente sintetizado nas palavras prévias à versão de 1938 do texto benjaminiano, o fio que une as recordações da infância de Benjamin e o “álbum de infância” da escritora afro-portuguesa:
[A]pelei deliberadamente àquelas imagens que no exílio costumam despertar mais fortemente a nostalgia – as da infância. Mas o sentimento de nostalgia não podia, nesse caso, sobrepor-se ao espírito […]. Procurei conter esse sentimento recorrendo ao ponto de vista que me aconselhava a seguir a irreversibilidade do tempo passado, não como qualquer coisa de casual e biográfico, mas sim de necessário e social. O resultado foi que os traços biográficos, que se revelam mais na continuidade do que na profundidade da experiência, recuam completamente para um plano de fundo nessas tentativas. […] Procurei, pelo contrário apoderar-me das imagens nas quais se evidencia a experiência da grande cidade por uma criança da classe burguesa. (Benjamin, 2013: 67)
Em Almeida o tornar-se duma experiência individual em meio de recuperação – ou, melhor dito, de “reparação” – duma história coletiva é postulado com um tom, quiçá também em parte devedor da leitura de Benjamin, de desconfiança e desilusão: “Como poderia aspirar a uma política um drama interno?” (Almeida, 2020: 134). Na verdade, esta pergunta retórica dá a tónica a toda a obra e fá-lo sem reivindicações explícitas, sem que o significado político e social, tão “necessário”, da “biografia” do cabelo duma mulher afrodescendente no Portugal do século XXI nunca ponha em segundo plano o seu teor literário e o seu valor estético.
Se Esse cabelo é uma biografia, como se autodeclara desde o primeiro parágrafo, do cabelo da narradora/protagonista, os traços típicos desta forma literária são logo explicitados: depois de traçada uma improvável descendência duma “menina Constança, loura furtiva […], paixão silenciosa de juventude do meu avô negro” (Almeida, 2020: 13) e a real de “gerações de alienados”, uma família que “descreveu o caminho entre Portugal e Angola em navios e aviões, ao longo de quatro gerações” (15), surgem como primeira referência reconhecível da pessoa em carne e osso que está a escrever a história do seu cabelo crespo as primeiras imagens, “fotografias de recém-nascida” e uma fotografia de passaporte de que se pode retirar a impressão do “desentendimento feliz quanto ao significado de se ser fotografado” (15) próprio das crianças. Estas primeiras imagens de si relacionam-se com outras duas que as acompanham e que, até do ponto de vista semântico, remetem para o plano visual: a do espelho, arquetipicamente ligada à apreensão de si na infância (Torrão, 2017), mas também ao ato de ver-se retratados numa fotografia, e a da “reminiscência visual de rochas da praia: rochas lodosas em que se escorrega e é difícil andar descalço” suscitada pela alcunha cruel de “‘mulata das pedras’, de mau cabelo e segunda categoria” (Almeida, 2020: 16) com que a narradora foi apostrofada alguma vez.
Mas não é esta imagem mental o lugar de origem, o fulcro da identidade da Mila (o nome com que a certa altura do texto a narradora passa a chamar-se a si própria), nem este lugar é uma imagem, mas sim um cheiro: o perfume do cabelo da avó paterna ao penteá-la em criança. Na verdade, o plano sensível dos cheiros e o das imagens entrecruzam-se aqui na construção identitária da protagonista, porque neste ponto se passa aquele processo pelo qual a representação mental do eu origina da comparação com as imagens dos outros que o rodeiam:
Espalhadas pela casa e por gavetas, encontrava fotografias suas da juventude, de quando o seu cabelo era ainda negro e reluzente, graciosamente composto num alpendre na Beira, ou esvoaçando entre pombos junto a uma fonte numa viagem a Itália projectada na parede pelo meu avô. O cabelo negro da avó ficaria pelo caminho ou, parecia-me então, renascera na cabeça de algumas primas, nas quais, embora ainda meninas, se reconstituía com força e intenção: um cabelo de mulher legado precocemente e cuja graça as aguardava, disfarçado na fotografia de grupo em franjas caricatas e farfalhudas, tapando-lhes a vista. (Almeida, 2020: 30)
É precisamente nas fotografias de grupo, de família, que nas escritas autobiográficas (mas não só) se vai à procura dos denominadores comuns, dos traços familiares, das parecenças que às vezes se acha possível desvendar [11] e através dos quais se tenta encontrar “sentidos, ligações, uma explicação para tudo” (Almeida, 2020: 51-52). Mila, não se incluindo na herança capilar da sua avó portuguesa, declara desta forma a “divisão entre a consciência que tem de si própria e do ideal a atingir” encenando, em Esse cabelo, a “luta entre o eu real e o eu ideal, complicada pelo facto de a imago com a qual […] construiu o seu eu ideal conter em si uma diferença fundamental entre os outros e ela própria” (Torrão, 2017: 281). É uma luta travada diante do espelho, a “repercussão das frustrações estéticas num enjoo vivido ao longo do dia como uma falha moral, uma maldição” (Almeida, 2020: 46) produzida também por outros modelos estéticos (e, implicitamente, de vida) que desafiam a identidade da protagonista: são as “crianças negras de cabelos lisos” (26) reproduzidas numa embalagem de desfrisante no primeiro salão visitado em criança, ou o álbum de fotografias mostrado por Tina, onde esta cabeleireira da Guiné Conacri tinha recolhido uma seleção de imagens dos melhores penteados feitos por ela nas clientes, tão antitético com respeito aos “álbuns despenteados” (108) da narradora. Revela-se, em todas estas passagens, o lado enganoso (duplo), e por isso tão desestabilizante em relação à construção da imagem de si (e, em definitiva, da identidade), que todas as outras imagens podem ter – tanto as projeções de si ao espelho, quanto as representações visuais derivadas de metáforas verbais, até às reproduções de familiares ou pessoas estranhas com que supostos traços comuns do ponto de vista biológico (genéticos no primeiro caso, “étnicos” no segundo) teriam outrossim que aparentar o indivíduo no plano visivo.
Os temas do espelho e do duplo, que acabo de mencionar, surgem um ao lado do outro ainda num dos primeiros capítulos dedicados à infância, numa passagem em que a narradora refere as idas com o pai à Feira Popular de Lisboa. Aqui, a “repetição maravilhosa” (Almeida, 2020: 59) da sua figura nos espelhos mágicos resulta consolatória por mostrar-lhe possíveis imagens de si projetadas no futuro, num nítido contraste com a “curiosidade abominável” (60) da pergunta de algum passante, insinuadora da impossibilidade de parentesco da protagonista em criança com o pai dela com quem andava de mão dada, destruindo assim aquela duplicidade sentida como congénita e natural dos filhos em relação aos (às feições dos) pais. A negação da identidade entre filha e pai, proferida por um desconhecido e portanto representante, pelo menos em parte, da vox populi, ou seja da reação da sociedade à existência de pessoas como Mila, introduz de repente na vida da protagonista a perceção duma duplicidade não “natural”, mas sim ameaçadora e deformadora, que é a que tem a ver com a ordem de representações própria do racismo:
Race and racism also have the fundamental characteristic of always inciting and engendering a double, a substitute, an equivalent, a mask, a simulacrum. A real human face comes into view. The work of racism consists in relegating it to the background or covering it with a veil. It replaces this face by calling up, from the depths of the imagination, a ghost of a face, a simulacrum of a face, a silhouette that replaces the body and face of a human being. Racism consists, most of all, in substituting what is with something else, with another reality. It has the power to distort the real and to fix affect, but it is also a form of psychic derangement, the mechanism through which the repressed suddenly surfaces. When the racist sees a Black person, he does not see that the Black person is not there, does not exist, and is just a sign of a pathological fixation on the absence of a relationship. We must therefore consider race as being both beside and beyond being. It is an operation of the imagination, the site of an encounter with the shadows and hidden zones of the unconscious. (Mbembe, 2017: 32 [12])
Não será por acaso, parece-me, que as únicas duas fotografias materialmente reproduzidas na obra sejam reconduzíveis ao tema do racismo, estabelecendo de tal forma um elo entre a relação vida-forma, real-representação do real característica da imagem fotográfica e a especular relação entre corpo-imagem, realidade física-aparência fantasmática criada pela consciência racista. A écfrase da fotografia de Will Counts, que retrata a estudante negra Elizabeth Eckford em Little Rock (Arkansas) a 4 de setembro de 1957 rodeada por brancos hostis enquanto se dirige para a escola depois da aprovação duma lei proibindo a segregação nos institutos escolares, já foi comentada pelas outras intérpretes de Esse cabelo (Torrão, 2017; Ferreira, 2020). Interessante, do ponto de vista deste artigo, é a definição de “auto-retrato meu” (Almeida, 2020: 89) dada pela narradora à imagem, logo precisada na de “radiografia da minha alma” (90). A autora quebra aqui o “pacto autobiográfico” com os seus leitores, o qual pressupõe por parte do autor a recuperação e a narração de episódios vividos por ele (e não por outrem), mas fá-lo abertamente ao utilizar o verbo “simbolizar” para referir-se à moldura dentro da qual este trecho tem de ser lido. De facto, não estamos em frente da reprodução sobre suporte de papel da pessoa física da protagonista/narradora/autora, mas sim da representação metafórica dos conflitos entre realidade e aparência, entre “eu real” e “eu ideal”, numa reverberação de dois sentidos entre plano individual e plano coletivo. O “retrato de uma autoperseguição e da tentativa diária de lhe ser indiferente” (Almeida, 2020: 90), sinónimo do “auto-retrato” e da “radiografia” utilizados poucas linhas antes, remete para o julgamento, instilado pelas falsas projeções dos brancos, que os negros costumam emitir sobre si mesmos, sobre os seus próprios corpos. Este julgamento – um processo que determina vergonha, desprezo de si e náusea – já tinha sido evidenciado por Fanon em Peau noire, masques blancs ao falar do “esquema histórico-racial” contra- e sobreposto ao “esquema corporal” elaborado pelos negros, na tentativa de definir-se a si próprios, por causa do olhar branco que, “através de mil detalhes, anedotas, relatos” (2008: 105) acompanhando a cor da pele, disseca e sobredetermina a partir dum elemento exterior a pessoa negra: “Não sou escravo da ‘idéia’ que os outros fazem de mim, mas da minha aparição” (108). A segunda fotografia, reproduzida na última página da obra, é um retrato de Eddie Cantor, cómico norte-americano da primeira metade do século XX, maquilhado em blackface para a sua atuação na série de representações teatrais de revista Ziegfeld Follies, a que participou entre 1917 e 1927. Aqui, a narradora não descreve explicitamente a imagem – embora relembre a atmosfera das paródias dos negros estilizados através do blackface: “Vejo que, à distância devida, o que fui é esse rosto duplicado, que sou eu quem o molesta e lhe dá ordens, quem bate o compasso para que assobie, quem troça do seu nariz abatatado” (Almeida, 2020: 138) –, mas essa serve de referente indireto para o discurso final sobre o duplo, ou seja sobre a pessoa que não chegou a ser, sobre a parte africana de si esquecida no “período de desenraizamento e incúria” (75) para com o seu cabelo, sobre a “negra de papel” (78) que ganhou vida nas suas palavras e que encarna a procura da sua própria identidade:
Não consigo manter-me lúcida enquanto recordo nem fixar uma moral da memória que, deixada à solta, me devolve o que sou sob forma do duplo que me merece, ao mesmo tempo, repulsa e comprazimento, conduzindo-me à posição de execrar essa máscara para logo depois perceber que execrável é não ser capaz de acarinhar o conceito paupérrimo e emprestado daquilo que também sou. (139)
Se considerarmos a definição de fototexto literário como uma narrativa que explora com palavras a natureza da representação fotográfica, definição a que aludi acima, significativo será também o capítulo que antecede o mais comentado da écfrase. Nele, é a relação entre morte e fotografia a ser aprofundada, aliás um dos núcleos de reflexão dos já mencionados Benjamin e Sontag (para não falar de Roland Barthes no seu célebre La chambre claire). Logo no começo do capítulo surgem imagens de estruturas arquitetónicas, encontradas pela narradora num livro, que ela “percebe” como sendo peças que compõem um álbum de família, instituindo por conseguinte um paralelo entre tais “imagens de ruínas” e as pessoas que aparecem retratadas nos álbuns, ou seja “nós” (Almeida, 2020: 81). A comparação aprofunda-se na ligação pontual estabelecida entre o processo químico-físico de deterioração das fotografias, sobretudo no que se refere à perda das cores originárias, e o processo de esquecimento, que “muda de cor” os acontecimentos da infância, cola-os uns aos outros, como se fosse o resultado da falta de cura de algum arquivista:
As minhas fotografias de infância deterioradas sobreviveram sob a cura de nenhum documentalista, atiradas para uma caixa velha, perdendo a cor, colando-se umas às outras. Não nos podemos eximir de nos reencontrarmos como o produto das marcas que a nossa incúria deixou nos nossos arquivos, exactamente como se nos apercebêssemos de que o propósito da cura, do zelo do restaurador, fosse não o de zelar pela matéria do registo, mas por aquilo que nos chega de quanto registámos. Como se a cura pudesse curar as personagens registadas, e não o suporte através do qual sobreviveram. Não nos podemos eximir de que a nossa infância tenha mudado de cor, e seja agora não de um sépia intencionado pelo fotógrafo, mas do sépia deste nosso esquecimento. (Almeida, 2020: 81-82)
Mas é na passagem das imagens fixas das fotografias às em movimento de um filme mudo do arquivo familiar, que remonta ao período vivido pelos avós paternos e os filhos deles em Moçambique, ainda na época colonial, que as considerações sobre os estragos da memória e a caduquice do que nela fica registado tocam, enfim, o verdadeiro tema da morte. Isto parece paradoxal, considerando que o movimento reproduzido no filme é característica da vida e se contrapõe à fixidez da morte, mas na verdade a contiguidade, também cronológica, entre as duas técnicas permitiu paralelismos já desde os primórdios da cinematografia: é o caso, por exemplo, dum escritor como Luigi Pirandello, que em particular no seu romance Quaderni di Serafino Gubbio operatore (1925; Cadernos de Serafino Gubbio operador, 1990) trata todos os aspetos e as consequências da operação da máquina cinematográfica, não muito diferente da fotográfica na sua voracidade, no seu ato de “tomar”, na sua objetiva que substitui silenciosa e mecanicamente o olho humano, na sua reprodução mecânica que ameaça o fluxo da vida [13].
Em Esse cabelo, a distância entre o momento da filmagem em finais dos anos 60 e o da visão das imagens por parte da narradora, já nos anos 2000, junto com a deterioração técnica da película que lhe acrescentou sons antes ausentes e a transposição do filme para um suporte mais moderno, o DVD, que acelerou a velocidade da sucessão das imagens, tornam os sujeitos capturados e restituídos nelas em autómatos, desalmam-nos, reduzem-nos a coisas – numa palavra, tiram-lhes o que a vida tem de mais próprio: “Estamos mortos, penso ao ver-nos, como pensaria se me acontecesse reencontrar num filme um actor defunto” (Almeida, 2020: 83). Vêm a propósito aqui as palavras do acima referido Barthes com as quais o semiólogo francês descreve o ato da visão da fotografia de si próprios como a passagem do estado de sujeito (vivo) ao estado de objeto (morto): “Imaginairement, la Photographie (celle dont j’ai l’intention) représente ce moment très subtil où, à vrai dire, je ne suis ni un sujet ni un objet, mais plutôt un sujet qui se sent devenir un objet: je vis alors une micro-expérience de la mort (de la parenthèse): je deviens vraiment spectre” (1980: 30).
Merecem, enfim, uma palavra conclusiva os capítulos marcados pela ausência (total ou quase) de referência a fotografias, reveladores justamente, numa obra estruturada ao redor da imagem fotográfica e dos seus significados quanto à definição da identidade, do tornar-se em procedimento narrativo desses temas. De facto, a adolescência, época do despertar do “esquecimento” do cabelo simbolizado por tranças compridas de cabelo postiço nas quais a protagonista tinha ganho orgulho, por ser “apenas um exacerbamento do que nenhum de nós queria vir a ser” (Almeida, 2020: 100) é metaforizada, numa frase só, como fotografias remotas dum acontecimento legendário e inverosimilhante. Mas é aí onde a escrita autobiográfica carece completamente do suporte das imagens fotográficas que há algum tipo de lacuna na procura da identidade, algum buraco impreenchível que põe a nu falhas e desalinhamentos. Acontece no penúltimo capítulo, o dos “salões negativos”, que simbolizam “a história da interrupção dos negócios, das expectativas defraudadas e das mudanças de planos, de telefones, de emprego, de casa, dos que mudam de país para viver melhor” (Almeida, 2020: 133), e da desconfiada pergunta derivada dessa “história acidentada” sobre o sentido político do que parece não passar de um drama individual. Acontece no capítulo em que pela primeira vez ocorre a pergunta “Quem é a Mila?” (77) e a narradora se apercebe das não-coincidências inerentes à duplicidade da sua própria identidade. Acontece, antes de mais, no capítulo em que fala do seu relacionamento com a mãe, uma figura cuja relativa ausência na infância da Mila influencia a construção da sua ideia de si, e sobretudo da ideia de si como mulher. É a esta ideia que está ligada mais uma imagem do duplo, o disfarce de mulher africana vestido em ocasião duma festa de Carnaval na escola: “Que prodígio de oportunidade uma pessoa mascarar-se do que é, distanciando-se e duplicando-se” (Almeida, 2020: 105). O que a separou deste eu ideal (o segundo, se pensarmos na identidade portuguesa e europeia tradicionalmente “branca” representada pela avó e pelas primas como sendo o primeiro), do que poderia ter vindo a ser mas não foi, “[n]ão foi a história […]: foi ser uma pessoa” (105). O plano biográfico parece aqui prevalecer sobre o social, o interesse político desta específica biografia parece recuar frente à mera casualidade duma experiência pessoal entre milhares doutras. Mas se permanece esta desconfiança, já várias vezes mencionada, quanto à representatividade coletiva da escrita autobiográfica, o laço profundo entre autobiografia e fotografia, entre identidade e imagem, é reafirmado mais uma vez, porque quem “teve o lugar de curadora da liberdade necessária para fazer de mim uma pessoa”, de não sucumbir, de alguma forma, à história, foi a segunda mulher do pai, a que não por acaso tirou os retratos que possibilitaram a escrita de Esse cabelo, “o olho por detrás de quase todas as fotografias deste álbum” (Almeida, 2020: 106).
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RAMOS, Marina Feldhues (2017). Conhecer fotolivros: (in)definições, histórias e processos de produção. Dissertação de mestrado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco.
RIBEIRO, Margarida Calafate (2019a). “Luanda, Lisboa, Paraíso?”. Buala. 26 dez 2019. https://www.buala.org/pt/a-ler/luanda-lisboa-paraiso/ [31 março 2021].
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NOTAS
[1] Não me debruçarei aqui sobre a produção crítica ocasionada pela publicação do romance Luanda, Lisboa, Paraíso, por não ser o núcleo de interesse deste artigo; é importante observar, aliás, que é a partir desse momento que também alguns entre os maiores estudiosos das literaturas em língua portuguesa dedicaram as suas análises à obra de Almeida, como no caso de Inocência Mata (2018), Margarida Calafate Ribeiro (2019a, 2019b) ou Paulo de Medeiros (2020).
[2] Ver: “[L]a caratteristica di fondo dell’operazione autobiografica, dal punto di vista del soggetto che prende in mano la penna, è quella di offrire una sua interpretazione dei fatti della sua vita, uno sforzo di recupero attraverso la memoria e il riordino sulla base dell’idea di sé che ha al momento in cui scrive” (Ceserani, 2011: 188).
[3] Como bem referido por Ferreira (2020), a variabilidade dos rótulos atribuídos por recenseadores e entrevistadores à obra logo a seguir à sua publicação testemunha a impossibilidade de classificá-la de forma inequívoca. No entanto, tanto a repetição de definições como “autoficção”, “memória”, “romance autobiográfico”, quanto as próprias características do texto, que aprofundarei no seguimento do artigo, fazem com que esta atribuição de género seja, embora parcial, apropriada.
[4] De facto, nem em Lara nem em La mia casa è dove sono há algum interesse por fotografias, embora a capa da segunda edição do primeiro possa enganar ao trazer impressa a reprodução fotográfica dum casal misto no dia das núpcias (os pais da autora em 1955), a qual remete para um contexto de memórias familiares. Igiaba Scego, por seu lado, colaborou com o fotógrafo Rino Bianchi numa obra posterior, o fotolivro Roma negata: percorsi postcoloniali nella città, publicado em 2014.
[5] Regras de isolamento é um fotolivro entendido segundo a definição dada por Kiefer, ou seja, “uma publicação cujo eixo central é a imagem fotográfica” (2018: 79), matizada pela afirmação de Ramos segundo a qual nesta tipologia peculiar de livros as imagens fotográficas podem tanto ser protagonistas como “divid[ir] o protagonismo” (2017: 29) com o texto.
[6] Logo no começo do livro surge a consideração ocasionada por uma troca com Maria de Lurdes Janeiro, que organizou as cartas da mãe Maria Gisela enviadas à família na década de 50 desde a Índia no livro Cartas de Damão, “ilustrado com imagens do arquivo familiar e documentos de época” (Almeida e Brito, 2020: 13). Esta passagem, aliás, dá conta do que parece ser, na autora, um interesse mais amplo pela imagem (não exclusivamente fotográfica) e pela materialidade do registo documental que se manifesta também no seu romance mais aclamado Luanda, Lisboa, Paraíso.
[7] Noutras crónicas, apesar de não ser o tema principal, a reflexão à volta da fotografia toma a forma de justaposição de imagens a obras literárias (“Canção de um mundo que persiste”), écfrase (“Nunca, nunca”), referência ao pensamento de fotógrafos (“Ângulos mortos”).
[8] Ver: “Al centro del mio interesse è proprio questo aspetto di quel rapporto e cioè la possibilità che il procedimento fotografico (con i suoi linguaggi e le sue connotazioni metaforiche) si tematizzi nei singoli testi e che al tempo stesso i vari temi (suggeriti da quel linguaggio) si facciano procedimento, offrendo esempi di rappresentazione e di possibili svolgimenti narrativi” (Ceserani, 2011: 12).
[9] E se pensarmos nos paralelos laços entre fotografia e autobiografia, que assentam precisamente na memória, eis fechado o círculo: “Il legame sicuramente più forte esistente fra la fotografia e l’autobiografia è costituito dalla memoria, dai suoi modi di operare, dalle sue complesse strutture consce e inconsce e dall’uso che essa sa fare (fin dai tempi antichi, inventori delle ‘arti della memoria’) dei supporti visivi” (Ceserani, 2011: 193).
[10] A obra nunca foi publicada na sua forma completa e definitiva enquanto Benjamin era ainda vivo e dela existem diferentes manuscritos, que podem ser reconduzidos aos dois títulos de Berliner Chronik (Crónica de Berlim), composta em 1932, e Berliner Kindheit um Neunzehnhundert, da qual existem pelo menos a versão chamada de Gießen de 1933 e a versão de 1938. Não tendo sido possível ter acesso à tradução portuguesa Rua de sentido único e infância em Berlim por volta de 1900, publicada em 1992 com prefácio de Susan Sontag, utilizei como referência os textos contidos na edição italiana das obras completas, que remetem às três versões mencionadas, e a tradução brasileira, publicada em 2013. Tanto a edição portuguesa quanto a brasileira poderão ser a versão lida por Almeida e que a inspirou.
[11] O mesmo jogo do reencontro das parecenças, ou das “persistências”, dá-se mais uma vez na obra quando Mila vê nas feições de algumas tias os mesmos olhos e o mesmo nariz da sua bisavó judia (ver Almeida, 2020: 60-61). Em todos estes trechos ecoam as palavras de Susan Sontag (1977) acerca do rito social da comemoração dos feitos familiares: “Through photographs, each family constructs a portrait-chronicle of itself―a portable fit of images that bears witness of its connectedness. […] [P]hotography came along to memorialize, to restate symbolically, the imperiled continuity and vanishing extendedness of family life. Those ghostly traces, photographs, supply the token presence of the dispersed relatives. A family’s photograph album is generally about the extended family―and, often, is all that remains of it” (8-9).
[12] Cf. Kilomba (2019).
[13] Ver: “In questo straordinario testo pirandelliano vengono trattati ampiamente, e portati spesso al limite del grottesco, tutti gli aspetti e le conseguenze dell’operare della ‘macchinetta’ cinematografica (non molto diversa da quella fotografica e accomunata in una generale condanna di tutte le macchine) e della sua inconsueta voracità, che si attua attraverso l’atto del ‘prendere’ e del ‘riprendere’, della riproduzione meccanica come minaccia incombente sul fluire della vita, dell’obiettivo fotografico e cinematografico come sostituto silenzioso e meccanico dell’occhio umano” (Ceserani, 2011: 156).
© 2021 Alice Girotto.
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