Daqui para lá e de volta aqui: realizadores transmédia ou continuidade de estilo?
Francisco Silveira
UNIVERSIDADE DE COIMBRA | CLP
ORCID: 0000-0002-2711-4855
Carol Vernallis, Holly Rogers e Lisa Perrott (eds.). Transmedia Directors: Artistry, Industry and New Audiovisual Aesthetics. Nova Iorque: Bloomsbury Academic, 2020. 510 pp. ISBN 978-1-5013-3928-8.
Transportemo-nos para um comboio, partamos de uma das “carruagens” de Transmedia Directors: Artistry, Industry and New Audiovisual Aesthetics para melhor veicular o “quê” e o “como” deste livro de artigos académicos. Acontece que em “Whirled Pieces: Bong Joon Ho’s Snowpiercer and the components of global transmedia production”, o autor do capítulo, J.D. Connor, não só parece metaforizar a diegese desse filme de 2013 enquanto expressão artística transmediática como (tal e qual o título prenuncia) argumenta diretamente o seu processo produtivo transnacional enquanto fenómeno da mesma ordem.
Comecemos pela narrativa: num futuro distópico em que a tentativa de travar o aquecimento global sai pela culatra gerando uma nova era glacial, o que e os que restam da humanidade resumem-se a um comboio incessante que circunda todo o globo e aos seus habitantes permanentes. Acentuando-se um rígido sistema classista, a cauda do comboio compõe-se de pobres, “trabalhadores”, na frente/locomotiva vivem os governantes e demais privilegiados que controlam todos os recursos. A diegese acompanha a investida revolucionária dos primeiros, rumando à frente de carruagem em carruagem, de classe em classe, de micro em microecossistema. Posto isto, basta a esta recensão resumir que a investida revelar-se-á um plano malthusiano de controlo/equilíbrio populacional/provisional (por gerar violência e mortes) instigado pelo líder-locomotiva do macroecossistema fechado.
Ora, a destreza reflexiva deste artigo brota de mais ainda do que da apreensão que a “structure of the train alegorizes the class structure while the progress of the train allegorizes the narrative form” (132). Concretizando, chegando ao “processo produtivo transnacional”, o autor imbrica-o nuclearmente com a narrativa, ao construir o seu texto em torno do modo “how the modularity of the indie production struggle is figured in the modular progress through the train” (131). O seu contributo para Transmedia Directors, para a reconceptualização do termo-título da obra, pode ser lido nesse universo Snowpiercer expandido entre diegese e realidade real.
Connor traça então o percurso industrial de um filme conduzido pelo prestígio autoral do realizador Bong Joon perante forças sistémicas de infraestruturas e capital. Fá-lo socorrendo-se de algumas entrevistas do cineasta e de outras operadas pelo investigador a pessoas implicadas na produção de Snowpiercer. A cabeça da Comissão Fílmica da República Checa (Ludmila Claussova) ou o CEO da companhia sonoplástica Live Tone (Ralph Tae-young Choi) situada na Coreia do Sul iluminam os bastidores. A genealogia vinca não só uma “spatial dispersal [...] typical of the current global system” (130), mas acima de tudo uma modularidade digital em que pré-produção, produção e pós-produção e os diferentes componentes fílmicos (e.g., argumento, atuação...) se deslinearizam e se remodelam conforme as contingências. Recorrendo a um vocabulário transmediático, tornam-se diferentes e coexistentes pontos de entrada num universo.
Um universo em que se por um lado “trains are modular, linear, vectorized, path-dependent, scheduled […], train movies routinely instantiate direct contrasts to those aspects: the passage from car to car that links the modules; the separability of cars that breaks the unity of the train as such” (132). Assim, da mesma maneira que uma tradução coreana pirata levou Bong Joon Ho a familiarizar-se com Le Transperceneige (banda-desenhada adaptada pela longa-metragem) sem fugir à necessidade de negociar os direitos autorais depois; do mesmo modo que essa tradução se revelou o motor produtivo do filme, a ficção perpassa esses aspetos. O circuito produtivo global e multilinguístico de Snowpiercer rumo à sua exibição confunde-se com o comboio. Um comboio planetário onde o protagonista revolucionário Curtis (junto com a sua trupe) avança de carruagem em carruagem através de um dispositivo que vai traduzindo entre inglês e coreano e após a negociação com um especialista em segurança que desenhou o sistema das portas. Guiado pela figura paterna bondosa/ex-líder resistente Gilliam, Curtis culminará nas mãos da figura paterna malvada, o líder-locomotiva Willford, que, precisamente, chamará ao enredo que vimos “the great Curtis revolution: a blockbuster production with a devilishly unpredictable plot”. O autor de “Whirled Pieces” remata que “Gilliam is not the source of resistance to the technocratic calculations of the engineer but rather his supplier” (133), que a “ethical journey” (ibidem) de Curtis é antes uma indistinção “revolucionário-reacionário”.
Terminada esta oscilação de escalas, do jogo metalinguístico de Snowpiercer, o realizador Joon Ho apreende-se enquanto mais um dos “mystified collectives such as ‘the studio’” (119), uma marca cuja aura de serendipidade independente não é oposta ao modelo dito corporativo. Daí que, autoconsciente, J.D. Connor vá reiterando o gosto, o prestígio e o poder simbólico deste como decisivo em negociações contratuais. Tudo de volta à linha férrea quando ele mesmo se torna a interferência externa, o corpo regulatório, a absorção do trabalho de toda a equipa fílmica. Bong Joon Ho culmina tanto um mero outsourcing do capital económico que a quasi-ilegalidade da tradução pirata de Le Transperceneige tem de ser retroativamente regularizada para Snowpiercer existir.
Posto tudo isto, como transitar do modular para o modelar quanto ao comboio Transmedia Directors? Como encarrilar o texto de Connor com as forças, as fraquezas e as intenções de todo o livro em recensão? A obra editada por Carol Vernallis, Holly Rogers e Lisa Perrott divide entre elas a introdução e inclui-as algures nos vinte e sete capítulos divididos por nove partes. O elenco de investigadores, cujas áreas de formação/atuação vão dos estudos fílmicos, culturais, da comunicação à musicologia, à filosofia, à literatura ou à dança, alia-se ao empirismo artístico de alguns: dois pianistas, um realizador, uma vocalista ou um compositor cinematográfico. Essa composição intermedial cerca coincidentemente um conjunto de artistas audiovisuais que, na contemporaneidade, têm trabalhado em diferentes meios – cinema, televisão videoclipes, publicidade e plataformas internéticas –, explorando quer uma vertente estética, quer industrial.
Antes de entrelaçar tudo com “Whirled Pieces”, folheemos as nove partes de Transmedia Directors “à janela dessa carruagem”. Deparamo-nos primeiro com artigos sobre recorrências em Wes Anderson: a sua nova sinceridade/pós-ironia em vários meios e as suas colaborações fílmico-musicais; de seguida, Sofia Coppola e Michael Bay, ambos com uma arte que sobredetermina o atmosférico audiovisual sobre a coerência narrativa, são abordados a partir das suas formativas travessias mediáticas – entre vídeos musicais e cinema, sobretudo; a terceira parte, de cunho industrial inclui o artigo sobre Snowpiercer/Bong Joon Ho junto com um texto sobre David Fincher que salienta uma tensão de (des)atribuição e (des)singularização autoral ao longo da sua carreira. Surge então uma secção dedicada ao realizador “videoclípico” Emil Nava, na qual uma entrevista antecipa a exploração da sua minúcia textural com a cor – digitalmente processada e saturada – em conexão com a forma musical e demais elementos visuais (nomeadamente nas regulares criações para canções de Calvin Harris); em quinto, os vídeos musicais permanecem no eixo enquanto ecologia medial, um vaivém de influências entre práticas pensado em Dave Meyers (e inerente audiovisualidade epifânica), Floria Sigismondi (com David Bowie a encarnar o papel de meio) e na autoria dispersa do ambientalista Valtari Mystery Film Experiment, da banda Sigur Rós; na parte seis, a musicalização da forma/estilo por parte de David Lynch reúne análises que se fundamentam na representação de limiares (como os seus típicos corredores e cortinas), na hipermutabilidade de tudo e todos, em experimentações sónicas ou em disrupções temporais. Segue-se uma porção à volta de Barry Jenkins: desde a colaboração com o compositor Nicholas Britell que mistura o orquestral e o chopped and screwed em Moonlight, ao atentar em temporalidades-audiovisualidades diegéticas, mediáticas e percetivas,a uma entrevista com a editora Joi McMillon; em penúltimo, a presença internética e questões identitárias coligem as análises multimodais de um videoclipe da realizadora Jess Cope (dentro do cosmos transmédia Hand. Cannot. Erase., primeiramente ligado ao álbum homónimo de Steven Wilson) e do Instagram do artista Jay Versace a que subjaz um turbilhão autobiográfico, publicitário, coreográfico; na derradeira parte, o cinema de Lars Von Trier é o alvo a partir de uma dimensão háptica e diagramática, assim como, priorizando a música, de proximidades/distanciamentos face a antecedentes transmediáticos – e.g., a “obra de arte total” de Wagner.
Recuando à introdução (tripartida), unificadora declaração de intenções, Carol Vernallis foca o boom de realizadores a manejar vários meios entre 1990-2000, antecipa o nuclear “wish to reassess concepts of authorship, assemblage, transmedia, audio and visual aesthetics and world-building” (2-3). Ao argumentar um inerente vazio conceptual/metodológico em torno da relação imagem-som (na qual o segundo é uma expressão auxiliar do primeiro) ou a dificuldade em ter investigadores simultaneamente confortáveis em múltiplas disciplinas, implica o livro na necessidade fundacional de uns “estudos audiovisuais”. Noutro espectro, reitera a carga política progressista da obra na esteira do #MeToo e do #OscarsSoWhite: “My interviews with above- and below-the-line practitioners seemed to capture the industry’s new commitments to diversity and range” (5).
Holly Rogers, por sua vez, afirma que a supervisão/envolvimento de realizadores com argumentos, edição, fotografia ou som, poderiam ser considerados processos transmediais. Especifica o livro pelo centramento numa era de cultura participatória, de convergência dos média; conclui que “[a]lthough all our chapters investigate the ways in which one person’s voice develops through projects and across platforms while retaining a distinctive grain, most authors find [...] approaches to [...] collaborative creativity and distributed authorship” (9).
No fecho da introdução, Lisa Perrott completa que o fulgor académico sobre a transmedialidade se tem situado na sua subaceção de “transmedia storytelling”, na esteira narrativista e canónica de Henry Jenkins – segundo o qual o termo designa uma história que “unfolds across multiple media platforms, with each new text making a distinctive and valuable contribution to the whole” (15). Cada obra constitui, nesse contexto, um ponto de entrada e saída de um universo comum, de uma continuidade narrativa. Não rejeitando essa linhagem associada a uma obra central – “mothership” – com outras em órbita e à lógica hipereconomicista dos grandes “franchises”, Perrott defende uma expansão em que a própria descontinuidade audiovisual pode ser transmediática e em que “[j]ust as the traditional concept of an auteur is suggested by a director’s persistent continuity of style across media, singular notions of authorship are challenged by [...] dialogism, polyphony and collaborative experimentation” (16).
Dito isto, será que Transmedia Directors se confirma bem-sucedido nas suas intenções reconceptualizadoras de “transmédia” (e “autoria”)? Transitando, de novo, do modelo para o módulo que o modela, Snowpiercer e a lógica argumentativa do artigo de J.D. Connor – ainda que este consista num exemplo com êxito – ajudam a expressar um impasse teórico presente em vários textos. No fundo, na tentativa de passar “daqui” para “lá” quanto ao fenómeno “transmédia” inextricável da narrativa rumo a uma aceção que aceita temas/estilos/elenco/equipa técnica recorrentes como algo transmediático, uma boa porção do livro falha. E podemos tanto comparar essa falha com uma incapacidade de completar a “reconvergência” do conceito (agora expandido), de voltar a casa como quem volta de “lá” para “aqui”, quanto com a “revolução reacionária” de Curtis, uma circularidade inconsequente entre “aqui” e “lá” que torna o fim da carruagem igual ao seu início e parece dizer: “transmédia”, para o ser, permanece próximo de Jenkins e do cânone... Da mesma maneira que, em Snowpiercer, o comboio, para o ser, aparenta necessitar de uma manutenção da exploração do humano pelo humano. A destruição do comboio nos instantes finais do filme é a destruição do “transmédia”: um termo que deixa de o ser ao perder a sua circunscrição. Tal como, em abismo, o próprio filme cessa assim que esse comboio culmina em destroços.
Claro está, o que nesta recensão se alega não é um fundamentalismo estático quanto à noção de “transmédia”, mas que a tentativa de ultrapassá-la resulta numa hiperamplitude afásica. Afinal, cair nesse genérico erro seria perpetuar gatekeepers e desvalorizar novas abordagens a priori. Contudo, seguindo o nexo das editoras e de vários autores, o conceito esvai-se numa mera questão de continuidade de estilo, seja de um realizador, seja deste e dos ditos “colaboradores” frequentes.
Holly Rogers parece reconhecer, de modo involuntário, este problema estrutural quando, no seu artigo sobre espaços sónicos consistentes entre meios por parte de Lynch, lança a dúvida: “Yet, what makes these audiovisual disjunctions a case of transmedial flow rather than simply a continuity of style?” (268). A resposta, porém, não sai da tautologia em que inventa uma distinção: os “pontos de entrada” para outro texto, de Jenkins, “transformam-se”, na especificidade do cineasta surrealista, em “pontos de saída” sonoros “além-ecrã”, como misteriosos acusmáticos irresolutos. Em contrapartida a esta proposta demasiado abrangente, a “continuidade narrativa” entre plataformas (apesar de qualquer narrativa/universo diegético se compor também de elementos estilísticos) parece, enquanto realidade artística peculiar, justificar a criação de um conceito orientador. Isto, sobretudo se não cairmos na precipitação de chamar “transmédia” a qualquer história única, já “definida”, espraiada numa versão em livro, em filme e afins – o corriqueiro e promocional exercício crossmedia de mais um blockbuster de Hollywood (embora nem sempre a fronteira seja fácil de traçar, particularmente se considerarmos a fan fiction). Qual caso de pseudomorfismo mineral, o compêndio Transmedia Directors não cumpre, portanto, o seu desígnio unificador de uma reconceptualização (“transmédia” aparenta surgir como mero termo na moda), o que não significa que os textos em si ou mesmo as secções em que se reúnem sejam descritiva, argumentativa ou analiticamente fracos.
Nessa senda, é possível agrupar os artigos em alguns “lugares distintos”. O texto de Connor, junto com o de Lisa Perrott acerca dos videoclipes de Floria Sigismondi para David Bowie – nomeadamente a convincente argumentação de que, fazendo jus ao cognome “camaleão”, este último “appears to be theorizing his own approach to transmedia, [...] considering himself as a particular type of medium: a canvas” (198) – e quase toda a sexta parte dedicada a Lynch são os que mais se aproximam da intenção de algo “novo”, “único” sobre a transmedialidade. Fazem-no metaforizando o “transmédia” dentro do próprio mundo diegético, estético – sendo que Connor acrescenta a isso a capacidade interpretativa de transbordar a diegese para a génese produtivo-industrial de uma obra.
Noutro campo, o ensaio de Lori Burns, ancorado numa análise multimodal minuciosa do videoclipe de Jess Cope para a canção “Routine” em entrelaçamento com a sua inserção no universo estético-narrativo transmedial Hand. Cannot. Erase., constitui uma abordagem segura/sólida. Isto é, sem pretender apresentar algo teoricamente diferente, examina na esteira do “transmedia storytelling” um ponto de entrada de um cosmos diegético maior; está sobremaneira interessada nas engrenagens específicas de uma obra (encontra para tal um ângulo temático: a “subjetividade” de uma personagem).
Há ainda um contingente de artigos que vai além da aplicação de “transmédia” a meras continuidades de estilo: e.g., em toda a parte sobre Von Trier, a sobredeterminação conceptual da “transmedialidade” chega ao cúmulo de esta ser usada para análises que quase não abandonam o cinema, longas-metragens. Em suma, a ontologia vampírica e esponjosa da sétima arte – a confluência nela de música, pintura, teatro, etc. –, ou seja, a integração de sistemas sígnicos distintos num só objeto mediático conhecida por multimodalidade, é aí designada de “transmédia”.
Importa convocar, já com essa carga crítica da reconceptualização “transmédia” em mente, o propósito adjacente de desatravancar o conceito de “autoria”. Nesse encadeamento, Vernallis ressalva na introdução que “[w]e did not write this collection to extol the great director” (4), mas não será, então, o preciso título Transmedia Directors um “tiro no pé”? Advindo tal vontade reconfiguradora do argumento que a teoria transmedial tem andado de mãos dadas com uma noção de autor individual, patriarcal, conservadora, é inegável que o livro dá em vários artigos atenção e até palavra a outros intervenientes que não o realizador: compositores, editores, argumentistas, etc. Contudo, todos estes surgem num compêndio/capítulos estruturados em torno de realizadores. Daí que as referências intertextuais de determinado artigo sejam, sobretudo, outras criações do mesmo realizador – com a noção de “obra” a não ser mais que uma metonímia do “autor pela obra” que reforça em vaivém a primazia do realizador e o caráter subsidiário dos demais. Nesse sentido, o livro apresenta só uma “reiteração reformista” da “teoria do autor”, dessa (recuperando Graig Uhlin no seu artigo sobre David Fincher) “form of intelectual property, establishing ownership over cultural products and subsuming the labour of many under a single signature” (141): agora com coautores, agora com colaboradores! Assim, a era da convergência medial repete-se na teorização da convergência autoral, e a proclamada transmedialidade entre plataformas ordena-se a partir da inquestionabilidade centrípeta do realizador.
Ademais, do corporativismo do estúdio para o realizador para cabeças mestras da edição ou do som, permanece o centralismo (mais ou menos “descentralizado”), um individualismo coletivista num processo de absorção laboral. Dito de outro modo, o crédito cultural e económico mantém-se no domínio da “personalidade”, do (sub)chefe de um trabalho feito por muitos (conforme a cabeça de uma comissão fílmica nacional convocada por J.D. Connor). Sem cair num qualquer infinito recursivo de “quem foi buscar as pedras que ergueram as paredes da casa onde o filme foi filmado”, a verdade é que Transmedia Directors não vem iluminar o domínio da “pessoa” em que se situa o grosso de uma equipa fílmica/audiovisual com intervenção criativa: operadoras de câmara, costureiros, maquilhadoras, criadores de sites, etc.
E, afinal, como propor noções de autoria realmente alternativas numa direção progressista querendo “titular” a “realização”, uma função que se define pela precisa supervisão e organização hierárquicas – mais do que por uma função material e estética em concreto – no contexto de uma prática artística quase sempre coletiva? Retomando Snowpiercer, o nexo malthusiano de exploração do humano pelo humano sem o qual o comboio deixa de o ser, a definição e a função do realizador parece voltar-nos até à circularidade inconsequente entre “aqui” e “lá”. Tudo se repete desde logo na “revolução de Curtis”, na lógica da necessidade de um “líder” pela qual os próprios explorados clamam ao longo dessa narrativa distópica – qual obra “mothership” num universo transmédia! Tudo isto se assoma, porquanto esta publicação da Bloomsbury assume um comprometimento político.
Quando Vernallis pergunta na introdução – “What is it about these directors and practitioners? Do they have better lives than us? Can we somehow emulate them? Do they know how to negotiate neoliberalism, precarity, austerity and work speed-up in ways we can adapt and use?” (2) –, voltamos sempre a Snowpiercer e ao artigo de J.D. Connor. Na tentativa de compilar um volume em que se reflita “gender, race, age, nationality, LGBTQ+ and disability” (5) e face ao desejo de que “[i]n more generous societies [...] everyone would have the abilities and resources to produce work if they so desired, and to be seen” (4-5), fica dúbio o que é mais insólito: se a ideia que uma elite de artistas milionários tem que lidar com o neoliberalismo, a precariedade e a austeridade que encabeçam e impõem; se o facto de outra elite, académica (a que pertencem vários dos autores dos artigos a começar pela “reputadíssima” Vernallis), estabelecer com tais artistas uma cisão entre “nós” e “eles”; se a sugestão implícita que nos devemos adaptar a esses mesmos “neoliberalismo, precariedade e austeridade”?
Conectando isso ao esoterismo romântico de Carol dizer que “[t]he directors discussed in this project project a gratitude for existence, and for coexisting with other people” (7) e à necessidade de afirmar também que “[s]ome of the politics of our ‘highest profile’ directors are more conservative than ours (Lynch, Bay and von Trier have all expressed sentiments we can’t endorse), but more are committed to social justice” (5), os propósitos editoriais deste volume exalam salvacionismo, ativismo performativo. Tal fica sobremaneira patente quando a vontade de distanciamento face a posições políticas ditas “conservadoras” de alguns realizadores embate no artigo de Linda Badley sobre Von Trier. Aí, as declarações do cineasta numa conferência de imprensa do Festival de Cannes de 2011 – “I understand Hitler.”; “I am a nazi.” – são tomadas como parte de um projeto artístico provocador/subversivo, descendente da estética totalitária de um romantismo alemão obcecado com a dialética eros e thanatos. A comunicação social no geral, claro está, não alcançou algo que “Andrew O’Hehir astutely noted” (380): “that the tendency that leads to magnificent art and poetry and the one that leads to totalitarianism and the cheesiest grade of 1990s music videos are all essentially the same” (ibidem). Ao enquadrar tais formulações de Von Trier como estando dentro de uma diegese artística, Transmedia Directors não só chega a análises moralistas de objetos ficcionais (confundindo a arte com o autor; o trabalho de temas violentos com a violência efetiva) como, na mais pura lógica de “reprodução cultural”, o faz dando força a um cliché antiprogressista. O preciso cliché da incompreensão avant-garde do artista visionário, a mitografia do génio individual com “feitio complicado” que o livro deveria desconstruir. Ao problema da “continuidade de estilo”, junta-se assim o problema de algo que não passa de outro “estilo de continuidade”: um topo colorido.
De certo modo, metaforizando, como Gilliam e Curtis, e nas palavras revisitadas de J.D. Connor, Transmedia Directors “is not the source of resistance to the technocratic calculations of the engineer but rather his supplier” (133). No entanto, se colocarmos de lado os paradoxos conceptuais e políticos da obra, se não centrarmos a discussão em validar ou desvalidar (de forma insuficiente) algo enquanto “transmédia”, a viagem vale a pena. Modular e modelarmente, atravessamos uma vasta maioria de artigos capazes de nos imergir bem fundo nas obsessões temático-estilísticas de um conjunto de artistas audiovisuais.
© 2021 Francisco Silveira.
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